No duro pronunciamento em resposta aos ataques de Bolsonaro ao STF nas manifestações de 7 de setembro, o ministro Luiz Fux, presidente da Suprema Corte, colocou o dedo na ferida do desgoverno. Segundo ele, o verdadeiro patriota não fecha os olhos para os problemas reais e urgentes do Brasil. “Pelo contrário, procura enfrentá-los”, completou Fux. A cerca de 400 quilômetros da Avenida Paulista, onde ocorreu a principal concentração bolsonarista do feriado da Independência, é possível ver o cenário desolador de um problema real do país, cuja gravidade não tem merecido a devida atenção de um presidente mais empenhado em fazer comícios para sua base radical de fãs. Na região de Furnas, ao sul de Minas Gerais, a nova crise hídrica que assola o país ganha contornos nítidos. Ali há represas semivazias, áreas antes submersas e agora tomadas por lama e pasto, marinas rodeadas de terra, barcos parados e uma sequência de paisagens turísticas desfiguradas pela maior estiagem já registrada no país. A situação dramática no entorno desse que é um dos principais complexos de fornecimento de energia elétrica do Brasil mostra de forma eloquente a probabilidade cada vez maior de um racionamento. A exemplo do que ocorreu em 2001, ele teria consequências desastrosas para a vida das pessoas, a economia — e atenção, Bolsonaro —, a política e a eleição.
A preocupação com a repetição do triste episódio da reta final do governo FHC não é gratuita. A situação atual é tão crítica que os níveis dos reservatórios do sistema Sudeste/Centro-Oeste, onde se produzem 70% da energia do país, estão ainda mais baixos do que há vinte anos (veja o quadro). Além disso, as projeções para os próximos meses não são nada alentadoras. Uma nota técnica divulgada em agosto pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) aponta para possíveis déficits no fornecimento de energia em outubro e novembro — ou seja, risco de apagões. O ONS sugere postergar manutenções programadas, importar mais energia da Argentina e do Uruguai e acionar termelétricas que não têm contrato de fornecimento com o governo. “A probabilidade de racionamento é grande, e não será uma surpresa”, alerta Roberto Pereira d’Araujo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina) e ex-conselheiro de Furnas.
Tempo para agir não faltou ao governo. Em outubro do ano passado, o ONS já apontara em relatório o que chamou de “contexto hidrológico desfavorável”. E os sinais se tornaram fortes. A bacia do Rio Paraná, que abastece Itaipu, por exemplo, teve entre setembro de 2020 e julho de 2021 seus piores índices hidrológicos dos últimos cinquenta anos para o período úmido. Em outubro, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, presidido pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, determinou reuniões semanais para debates técnicos. Desde então, o governo autorizou aumentar a geração termelétrica, mais cara, elevar as importações de energia, flexibilizar restrições operativas do sistema e ampliar a transferência de energia do Nordeste, onde os reservatórios estão mais cheios, para outras regiões, sobretudo o Sudeste. Tudo isso não se mostrou suficiente. Para bancar os elevados custos com as termelétricas e a importação de energia, o governo criou na semana passada uma nova bandeira tarifária, a “Escassez Hídrica”. Prevista para valer entre setembro e abril, a medida fará o brasileiro pagar mais 14,20 reais a cada 100 quilowatt-hora consumidos, um aumento médio de 6,78% nas contas de luz residenciais. “É consenso que o governo demorou para fazer isso. Tinha de ter sido feito em junho, depois dos baixos níveis dos reservatórios em maio. Foram três meses vendo o reservatório cair, comprometendo o equilíbrio entre oferta e demanda para outubro e novembro, e não se tomou nenhuma medida mais rápida”, critica Nivalde José de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, da UFRJ.
Em uma aposta arriscadíssima (e até mesmo irresponsável) de que o próximo regime de chuvas poderá evitar o pior, o governo postergou a todo custo o primeiro pacote de medidas de emergência. Mesmo assim, continua descartando ações mais graves — e muito impopulares, algo que certamente fará piorar ainda mais os já altos índices de reprovação do presidente nas pesquisas. Mas já não é possível negar a crise. O ministro Bento Albuquerque convocou uma cadeia nacional de rádio e TV no dia 31 de agosto para admitir a precária situação dos reservatórios, dizer que o Estado está fazendo o que pode — como cortar em 20% o consumo de energia elétrica nos órgãos públicos — e pedir à população que economize. “O empenho de todos nesse processo é fundamental para que possamos atravessar com segurança o grave momento energético”, disse. Chegou a pedir que os brasileiros usassem menos o ferro de passar roupa e prometeu dar desconto a quem poupar. Cinco dias antes, o próprio Bolsonaro acusara o golpe. “Peço esse favor para você: apague um ponto de luz agora”, declarou. Em boa parte do entorno do presidente, em vez de conselhos para a adoção de ações concretas e efetivas, existe apenas a torcida para que a natureza evite o pior. “Apesar de ser um quadro muito grave, que está sendo acompanhado de perto, há a esperança de que se consiga atravessar esse período sem racionamento”, diz o líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), um dos aliados de Bolsonaro que apostam no período chuvoso.
O governo terá de contar mesmo com a ajuda de São Pedro. Diante dos números atuais dos reservatórios, técnicos da pasta de Minas e Energia e especialistas veem como virtualmente impossível um cenário em que o problema seja debelado até os primeiros meses do ano que vem — isso no cenário mais otimista. Não por acaso, portanto, há entre interlocutores do presidente quem tema os desdobramentos eleitorais da encrenca. Ao deixar a situação chegar a esse ponto, Bolsonaro dificilmente escapará de ter de explicar aos eleitores a sua responsabilidade sobre a falta de energia e as consequências desastrosas dessa escassez. Com custos mais altos à indústria e a falta de chuvas afetando a produção de alimentos, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, já admitiu o forte impacto da crise hídrica na inflação, que fechou agosto com acumulado de 9,68% em doze meses. É o que faltava para agravar ainda mais um quadro de desemprego elevado e renda debilitada, que inibem o consumo (leia a reportagem na pág. 50). Além disso, o peso econômico de um apagão seria grande também porque atingiria o país no momento em que este tenta se reerguer dos estragos causados pela pandemia. “Se houver um racionamento, ele vai provocar o apagão definitivo em qualquer possibilidade de recuperação da imagem do governo e das chances efetivas de reeleição”, aponta o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda.
No campo do impacto político de um problema desse tamanho, há uma lição histórica que Bolsonaro não deveria subestimar. A crise energética que atingiu o governo FHC começou com uma série de alertas emitidos após um apagão em março de 1999, que atingiu onze estados. Antes de o governo decidir pelo racionamento, em 2001, foram registrados ao menos nove avisos sobre o risco de colapso energético em razão da escassez de chuvas e da diminuição do nível dos reservatórios. A avaliação da época é que a gestão tucana deixara de investir na geração de energia contando também com a boa vontade de São Pedro. Com a nação já combalida pela crise financeira que vinha da Ásia e da Rússia, o governo foi atingido em cheio pela irritação da população. Entre abril e maio de 2001, a avaliação negativa de FHC subiu de 28% para 37%, de acordo com pesquisa Vox Populi — um mau humor que inevitavelmente respingaria no candidato José Serra, escolhido pelo PSDB à sucessão e que acabaria derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002.
Devido à demora em agir, o remédio emergencial para controlar o prejuízo na época foi amargo. Por meio de medida provisória, o governo estabeleceu 20% de redução no consumo e previu pesadas multas e o risco de corte do fornecimento a quem não se enquadrasse nas novas regras. Os efeitos na economia foram, como era de esperar, os piores possíveis: não só o governo teve de bancar parte do prejuízo das geradoras em razão do consumo menor, como a conta ficou mais cara, a balança comercial registrou prejuízo de 1 bilhão de dólares, fábricas cortaram empregos, empresários reduziram investimentos e a baixa oferta de energia elétrica freou o crescimento do PIB. Em 1999, por causa da crise cambial, o indicador subiu apenas 0,5%. No ano seguinte, houve a retomada, para 4,36%, mas em 2001, com o racionamento, caiu para 1,5%, com três trimestres de queda. “A abordagem à época foi feita de maneira mais racional, nós nos reuníamos todo dia no Palácio, foi a prioridade número 1”, relembra José Jorge, então ministro de Minas e Energia. FHC criou um gabinete específico para cuidar do problema e nomeou para chefiá-lo o economista Pedro Parente. “Enquanto isso, a gestão de Bolsonaro está tentando esconder, passar por cima, como se isso não fosse aparecer. O grupo que cuida disso atualmente não tem tanta força. Na época, o governo todo se reunia, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, participava, e até o presidente comparecia às discussões”, completa José Jorge.
Durante o colapso de 2001, o sistema de Furnas chegou a 16,63 % de sua capacidade, situação muito parecida com a atual. Segundo as previsões do próprio ONS, esse número pode ficar entre 3% e 10% até novembro. Localizada na cidade de Formiga, uma das mais afetadas na região, uma marina, Mar de Minas, carrega em seu nome uma triste ironia: lagos para navegar sumiram do pedaço e docas de mais de 4 metros de altura que ficavam quase totalmente submersas na cheia viraram plataformas perdidas no horizonte. Em Areado, outro município da região, o cafeicultor Wilmar Messias da Silva, 58 anos, perdeu grande parte da produção de grãos que poderá entregar na safra do ano que vem devido à falta de água. Dos 4 500 sacos que ele previa gerar com a produção, só 500 estão garantidos. “O café queimou por conta da geada de julho deste ano. Se eu tivesse o lago na frente da plantação, com certeza essa perda não seria tão grande”, lamenta. Como lembrou o ministro Luiz Fux em seu discurso, essas são cenas de um problema real e urgente do Brasil. Se a crise hídrica se agravar, não vai dar para culpar o STF. Nem os aloprados vão acreditar nessa.
Com reportagem de Leonardo Lellis
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755