Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal cravou o martelo sobre a histórica decisão de legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Corte entendeu, por unanimidade, que a Constituição Federal não permite discriminar ninguém em função de sua orientação sexual, o que seria o caso ao se vetar a troca de alianças entre quem quer que seja. Foi com base na preservação dos direitos individuais e norteados por princípios como liberdade e dignidade que os magistrados determinaram que a união estável, prevista no artigo 226, também poderia ser celebrada entre casais homossexuais. Em voto memorável, a ministra Cármen Lúcia reforçou: “Contra todas as formas de preconceito há o direito constitucional”. Entre 2013 e 2022, houve o registro de 72 801 casamentos homoafetivos no país — uma multidão de brasileiros que relatam a felicidade de se sentir tão cidadãos como os outros.
Recentemente, um grupo de políticos marchou em direção oposta a este marco civilizatório, tentando emplacar um parágrafo no Código Civil que diz com todas as letras que “o casamento deve se dar apenas entre homens e mulheres”. Capitaneada por integrantes da ala evangélica e à direita no Congresso, a iniciativa se apresentou na forma de um projeto de lei que passou pela Comissão de Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, fazendo acender uma luz amarela pelo potencial de retrocesso que contém. “Estamos regulando o tema, uma vez que não há lei sobre ele, só uma interpretação do STF”, argumentou o relator, o deputado federal Pastor Eurico (PL-PE), que elencou motivos bíblicos para abraçar a ideia. “Estão promovendo uma cruzada ideológica contra nossos direitos com o intuito de mobilizar as bases conservadoras radicais”, rebateu a deputada trans Erika Hilton (PSOL-SP).
Resta ainda um longo percurso legislativo para se cravar a volta atrás, mas a ameaça de que ocorra já agitou camadas variadas da sociedade. Movimentos em prol dos direitos LGBTQIA+ levantaram a voz, e um abaixo-assinado contra o projeto teve a adesão de quase 200 grandes empresas. Artistas também expuseram sua indignação nas redes. “O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no planeta. A decisão da comissão, além de ser um retrocesso, incentiva essa violência”, disse a VEJA a cantora Ludmilla, 28 anos, casada desde 2019 com a bailarina Brunna Gonçalves, 31, que costuma abordar a questão da diversidade em seus shows. “É difícil acreditar que isso esteja sendo discutido nos dias de hoje”, desabafa.
O projeto de lei deixou, justificadamente, muitos casais com medo de ver seus tão festejados casamentos dissolvidos de uma hora para outra. Não vai acontecer, já que o texto não é retroativo — só valeria para futuros casais. “A decisão do STF se deu no âmbito dos direitos individuais, que são cláusulas pétreas e não podem ser mudadas em nenhuma circunstância”, explica Vivianne Ferreira, professora de Direito de Família, da FGV-SP. Ativista na área e um dos autores da ação que, em 2011, levou o caso ao Supremo, o professor Toni Reis, 59 anos, casou-se com o tradutor David Ian Harrad, 65, exatos quatro dias após a histórica decisão. “O cartório em Curitiba ainda nem sabia como agir”, lembra Toni, que em seguida celebrou cerimônia religiosa na Igreja Anglicana (o Vaticano ainda não reconhece tais uniões). Ele conta que a epopeia para adotar o primeiro filho antes das bodas não se compara à relativa facilidade que teve com os outros dois, após oficializar o longevo relacionamento. “Nossa união foi realizada com honras e pompas”, orgulha-se.
A luta para o Estado oficializar os elos homoafetivos vem desde os anos 1990, mas nunca avançou no Congresso, daí ter chegado ao STF. A tática dos casais até 2011 era recorrer à Justiça. Assim, uns obtiveram o direito de se casar, outros não. Mesmo com o avanço estabelecido pelo Supremo, inúmeros cartórios resistiam em selar esses matrimônios. Apenas em 2013, o Conselho Nacional de Justiça deu um fim às incertezas, obrigando-os a formalizar as uniões. “Além da celebração do amor, tudo isso representou segurança jurídica”, avalia Luiz André Moresi, 49 anos, coordenador de treinamento de call center, que, ao lado do então companheiro, o cabeleireiro José Sérgio Kauffman, foi o primeiro no país a reverter a união estável firmada no papel em casamento.
Ao todo, 36 países regulamentaram o casamento gay, sendo a Holanda a pioneira, em 2000. Seria logo seguida por Estados Unidos, França e Argentina, entre outros. O Brasil não é o único em que a onda conservadora ameaça atropelar direitos civis tão caros à sociedade. No cenário eleitoral americano, o pré-candidato republicano Ron DeSantis fez do tema seu mote de campanha. Expoente da extrema direita europeia, a primeira-ministra Giorgia Meloni, da Itália, tem pressionado governos locais a proibir a adoção de filhos por esses casais. Líderes autoritários, como o russo Vladimir Putin e o chinês Xi Jinping, não se cansam de voltar-se contra a comunidade LGBTQIA+. No Brasil, a questão vem à luz sob contornos religiosos, impulsionada pela alta mobilização de grupos evangélicos.
A recente vitória dessa turma no Congresso, felizmente, não é definitiva. A proposta será avaliada agora pelas comissões de Direitos Humanos e de Constituição e Justiça, ambas nas mãos do PT, que é contrário à ideia e vai se empenhar em inverter o jogo. Se vingar, será um inadmissível retorno ao passado, abalando casais que, ao subir ao altar, se viram caminhando em um mundo mais avançado e diverso. “Quando enfim nos casamos, olhamos uma para a outra e dissemos: como demorou”, lembra a ex-ministra dos Esportes Ana Moser, 55 anos, que, naquele 2018, estava há quase duas décadas com a chef Adriana Saldanha, com quem tem dois filhos. Resolveram formalizar a união justamente por temer os ventos conservadores que se avizinhavam. Que direitos conquistados a tanto custo e de tamanho impacto não sejam levados pela insensatez da intolerância.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866