Às vésperas da eleição, o New York Times, um dos jornais mais importantes do mundo, divulgou uma videorreportagem defendendo a ideia de que a preservação da Amazônia dependia da vitória de Lula. Na peça, de seis minutos, a publicação classificou o 30 de outubro — data do segundo turno das eleições — como o dia “mais importante para o planeta Terra e sua sobrevivência” e enumerou retrocessos do governo Bolsonaro, destacando que a reeleição do atual mandatário seria um incentivo à destruição definitiva da floresta. Um pouco de exagero, é verdade. Mas, após o triunfo do petista, é seguro dizer que a perspectiva de uma guinada nas políticas do Brasil no meio ambiente, ao menos no cenário internacional, foi imediata. No dia seguinte ao resultado do pleito, a Noruega anunciou que retomaria os investimentos no bioma e, dias depois, a Alemanha acompanhou a decisão dos nórdicos.
A expectativa criada pela troca de governo é proporcional aos desafios que o Brasil enfrenta. Durante a campanha, Lula prometeu empoderar índios, com a criação inédita de um Ministério dos Povos Originários, chegar ao desmatamento zero na Amazônia e eliminar garimpos ilegais. Disposto a transformar ações bem-sucedidas no meio ambiente no principal cartão-postal de seu governo no exterior, dentro de uma política que entende como oportunidade de recuperar o protagonismo do Brasil lá fora, Lula dará seu primeiro grande passo nessa direção na COP27, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Ele foi convidado pelo presidente do Egito para participar do evento, além de ter sido incluído na lista da comitiva de governadores da Amazônia.
A expectativa é que o presidente eleito marque presença por lá na próxima quarta, 16. “Lula vai cumprir papel importante no chamamento de responsabilidade dos países no âmbito do clima, em contrapartida com uma agenda ambiental que estava abandonada. Todos têm clareza de que o programa do Lula vai enfrentar o desmatamento”, diz o deputado federal eleito Nilto Tatto (PT-SP), que atuou como coordenador da campanha petista para o meio ambiente e que já está participando da conferência. Também devem acompanhar Lula as ex-ministras do Meio Ambiente Marina Silva e Izabella Teixeira, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) — além de uma comitiva de parlamentares que inclui os senadores Jaques Wagner (PT-BA) e Jean Paul Prates (PT-RN).
Reservadamente, membros da cúpula petista não descartam a possibilidade de que o nome do futuro titular da pasta do Meio Ambiente seja anunciado por Lula durante a COP. Uma das possibilidades aventadas para o posto é Randolfe, nome que brilha aos olhos do PT devido à sua aguerrida atuação na campanha. Mas, inegavelmente, a favorita para o cargo é Marina Silva. Ela chegou a romper com Lula após desentendimentos que começaram em 2006, quando a Casa Civil era chefiada por Dilma Rousseff — à época, a pasta acusava a então ministra de atrasar licenças ambientais e de, com isso, frear o desenvolvimento econômico do país. Os atritos ganharam contornos mais sérios quando, em 2008, o PAS (Plano Amazônia Sustentável) foi destinado à Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, chefiada por Roberto Mangabeira Unger. No mesmo ano, Marina pediu demissão e voltou ao Senado. Após a recente reaproximação com Lula, anunciada pouco antes do primeiro turno, grande parte das arestas foi aparada. Na campanha, ela se destacou pelo empenho e disponibilidade e, no trabalho de transição do governo, indicou pessoas de sua confiança para tratar do meio ambiente, como o ambientalista João Paulo Capobianco, vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade. “Lula assumiu de forma muito intensa o compromisso com a questão ambiental”, elogia Capobianco. Ele lembra que o plano de prevenção e controle ao desmatamento foi um grande sucesso na gestão do petista na Presidência, reduzindo em mais de 83% a destruição entre 2004 e 2012. “A expectativa é de que esse plano seja retomado, devidamente atualizado e posto em prática”, completa.
Apesar do ânimo em torno de Marina, a recondução da ex-ministra ao cargo não é unanimidade entre a cúpula petista. O que mais preocupa é o histórico de “inflexibilidade” da ex-senadora ao ser confrontada com decisões contrárias do governo, como foi a sequência de eventos que levou ao seu pedido de demissão. Embora os tempos tenham sido outros — bem como o conjunto de acontecimentos que se sucederam à época em que esteve à frente do ministério —, sua reação foi um prelúdio do que poderá vir a ser um desacordo caso não tenha apoio na condução de suas pautas. Capobianco, que foi braço direito de Marina no Meio Ambiente, defende a ideia de que nenhum ministro consegue executar agendas de forma adequada e relevante sem os apoios necessários da Presidência e da Casa Civil, mas avalia que a preocupação com a questão ambiental, hoje, passou a ser central para a agenda do governo, e não mais transversal, como era há quase quinze anos. “Os dados científicos e os acontecimentos que vêm ocorrendo nos últimos anos mostram que essa é uma agenda prioritária”, diz.
Independentemente de quem assumir a pasta do Meio Ambiente, algumas medidas prioritárias já estão definidas, como a do “revogaço”, apelido que se deu à revisão de decretos, portarias e demais dispositivos considerados “antiambientais” assinados na era Bolsonaro. Isso é visto como peça essencial para o plano de desmatamento zero da Amazônia. “Há cerca de 120 medidas que podem ser derrubadas já no começo do governo”, afirma Carlos Minc, ex-ministro de Lula e um dos conselheiros do presidente eleito para essa área. Um exemplo disso, segundo ele, é o fim do ato que facilitou a exportação de madeira sem fiscalização.
Ainda no tema desmatamento, outro ponto a ser tratado pelo futuro governo é a articulação da bioeconomia sustentável. “Tecnicamente, é possível zerar o desmatamento ilegal na Amazônia, mas o governo Bolsonaro deixou essa jornada muito mais longa e difícil por ter estrangulado as agências de extensão rural, que levam tecnologia para o campo, e as agências de controle — como ICMBio, Ibama e Funai —, além de ter facilitado a vida de quem abre novas áreas de forma criminosa”, enumera Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. Segundo ele, estudos mostram que o país tem uma grande quantidade de terras que um dia foram produtivas, mas que acabaram abandonadas. De acordo com ele, isso seria suficiente para dobrar a produção de alimentos. No entanto, recuperar esses espaços — uma tarefa mais cara e demorada do que abrir novas áreas — envolve esforços que foram enfraquecidos no atual governo: o combate rigoroso ao crime de roubo de terras (grilagem e apropriação de áreas públicas) e a disponibilização de tecnologia de ponta para os produtores.
Outra revisão urgente e necessária envolve a questão dos crimes ambientais, que deixaram de ser enfrentados tanto pela expressiva queda na aplicação de multas como pela proibição de que os fiscais destruam os maquinários e os produtos das atividades ilegais apreendidos na floresta. “Um sujeito que entra numa terra indígena para fazer garimpo investe 60 milhões de reais em maquinário e logística para acessar a área”, lembra Astrini. “É preciso inutilizar a operação dele, mas o governo proibiu a ação de inutilização. Então, o criminoso tem certeza de que vai reaver o valor investido. O grileiro, o garimpeiro e o madeireiro ilegal têm, hoje, a certeza da impunidade e do lucro”, completa o especialista.
Há ainda um consenso fortalecido nos últimos anos em torno de políticas para o meio ambiente de que não basta apenas combater esse tipo de criminalidade. É preciso ir além e levar desenvolvimento social para a região. “Para dar sustentabilidade às medidas de comando e controle, que já sabemos fazer desde a Rio-92, precisamos cuidar dos aproximadamente 26 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia. Levar infraestrutura, comunicação, saneamento, oportunidade de trabalho. Já há experiências boas, como na área de cosméticos. Isso vai permitir que as ações de comando e controle tenham sustentabilidade e não tenham um novo retrocesso lá na frente”, diz Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo e presidente da associação Ibá (Indústria Brasileira de Árvores). O deputado federal Nilto Tatto ressalta ainda que a preocupação com trabalhadores do garimpo e de madeireiras, por exemplo, deve ser um dos pontos centrais. Ele lembra que, segundo estimativas do Ibama, há cerca de 100 000 pessoas dependentes da exploração de garimpo e de madeiras. “Não há a possibilidade de enfrentar o desmatamento sem pensar alternativas econômicas para quem está envolvido na própria cadeia do clima, que são os trabalhadores”, diz.
No campo político, o novo governo terá o desafio de dialogar com as forças mais retrógradas do agronegócio e da mineração, que vinham defendendo a desregulamentação ambiental sob a justificativa de destravar a produção desses setores. Parte dos empresários do setor assegura que não haverá oposição imediata, mas paira no ar certa preocupação. O presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), João Martins da Silva Junior, afirmou que espera que o governo atue para “proteger a produção nacional das barreiras ao comércio (internacional) abertas ou disfarçadas de preocupações com a saúde e o meio ambiente”. Também disse que o novo governo deve garantir segurança jurídica para o produtor, defendendo-o de invasões de terra — em referência ao MST, historicamente próximo do PT. O coordenador da comissão de meio ambiente da bancada ruralista no Congresso, deputado Zé Vitor (PL-MG), sustenta que o agronegócio também quer zerar o desmatamento ilegal, mas há um ponto que desagrada ao setor. “Somos contrários à burocracia, que não estabelece prazos para análise de processos de licenciamento e autorizações”, critica.
O setor do agro, em peso, apoiou a tentativa de reeleição de Bolsonaro. Não por acaso, o presidente teve votação acima da média nas regiões Norte e Centro-Oeste, que concentram a produção no país. Na campanha presidencial, Bolsonaro tentou desmentir que o petista tenha sido mais eficiente no combate ao desmatamento na Amazônia, o que não é verdade. Dados do Inpe mostram que o petista assumiu seu primeiro mandato, em 2003, com altas taxas de desmatamento, e que elas começaram a cair de maneira expressiva a partir de 2005. Sob Bolsonaro, em sentido inverso, a área devastada aumentou entre 2019 e 2021 (veja o quadro).
Apesar dos avanços da gestão de Lula, no entanto, a destruição da floresta, que havia atingido o menor patamar em 2012, voltou a crescer no ano seguinte, sob Dilma Rousseff, caindo novamente em 2014. De 2015 em diante, o desmatamento só aumentou (com exceção de 2017). Relacionados a isso, a ocupação irregular do bioma, o fortalecimento do crime organizado na região amazônica e a explosão de garimpos ilegais aumentaram exponencialmente os desafios para convencer o mundo de que o Brasil tem capacidade de cuidar de seu patrimônio e cumprir uma agenda verde estabelecida em acordos internacionais. A presença de Lula na COP27 é um ótimo cartão de visitas, mas representa ainda o passo inicial para o imenso desafio que o país terá pela frente para proteger seu patrimônio e limpar sua manchada imagem no exterior no campo ambiental.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815