Conheci a Thaynna por intermédio de um amigo em comum, quando estava me preparando para entrar nas Forças Armadas. Nossa paixão foi arrebatadora e logo começamos a namorar. Eu havia me relacionado antes tanto com mulheres cis — aquelas que se reconhecem em todos os aspectos com o gênero de nascença — quanto com mulheres trans, que nasceram com o órgão masculino, mas não se identificam com ele. Para mim não há diferença, o que importa é a pessoa. A Thaynna me completa em diversos aspectos. O preconceito, no entanto, existe e não é simples conviver com ele. Durante um tempo, não contei sobre o namoro para a minha família. No quartel, tentava ser discreto, mas nem sempre é possível guardar segredos.
Quando a pandemia começou, tomei conhecimento de que alguns colegas de farda sabiam que eu namorava uma mulher trans. Tinha acabado de ingressar na Escola de Sargentos das Armas, um passo importante na concretização do meu sonho de crescer na carreira militar. O aumento de casos de Covid-19 nos obrigou a ficar internados no alojamento e a fofoca se alastrou. Um amigo falou que o pessoal estava comentando o assunto. Eu me afastei um pouco da turma, mas, mesmo assim, ouvia frases do tipo: “Você viu o Michelazzo namorando aquele traveco?”. A expressão preconceituosa se tornou uma constante em minha vida. O jeito foi ignorar as ofensas e colocar meu foco no treinamento. Deu resultado: mostrei serviço e ganhei confiança. Ter valor na caserna fez com que eu mesmo me valorizasse, ainda que vivendo um relacionamento amoroso pouco usual.
O primeiro ano do curso foi na minha cidade, Natal. A coisa ficou feia mesmo no segundo ano, quando tive de me mudar para Minas Gerais, onde fica a sede da ESA. Já entrei marcado. Alguns oficiais vieram pedir para eu tomar cuidado na convivência com os colegas: “Chega quieto, sem levantar bandeira”, me disseram. Toda tentativa de defender ideologia dentro do quartel é proibida e eles queriam evitar que eu desse respostas diretas, do tipo “namoro uma trans, sim, e você não tem nada a ver com isso”. Acatei os conselhos, mas a postura não aliviou a pressão. Qualquer errinho que eu cometia ganhava uma proporção muito grande. Todo mundo me zoava, era um massacre. Mas também tive apoio em alguns momentos. Um dia, começou a circular mais uma foto em que eu aparecia com a Thaynna, com a legenda: “O aluno da ESA chegando com o seu travequinho”. O capitão me chamou para me dar uma força. Alguns sargentos se solidarizaram. Luta melhor quem sabe apanhar e essa lição eu aprendi, a ponto de ser apontado como o aluno com melhor preparo psicológico.
Com a família também foi difícil. Esperei dois anos para contar para minha mãe. Ela não aceitou muito bem no começo, ficou preocupada com a impossibilidade de a gente ter filhos. Aos poucos, porém, o impacto inicial foi superado e hoje minha mãe ama a Thaynna. No dia da formatura, fiz questão da presença de meus parentes e da minha namorada. Nunca tive vergonha de aparecer com ela em público, pelo contrário, sempre fomos juntos à padaria, à academia. Estávamos comemorando na casa da minha avó quando tomamos conhecimento de uma mensagem de áudio que viralizou. Nela, um sargento mais antigo do que eu questionava com indignação: “Como é possível um traveco ir à formatura de um sargento? Botar o quepe na cabeça dele? Isso é um absurdo. Alguém tem de avisar que esses travecos não são bem-vindos!”. Prestei queixa na polícia por transfobia, preconceito e racismo, e espero que os autores sejam responsabilizados. Dessa vez, o ódio foi derrotado — recebemos apoio nas redes sociais de gente que nunca vi na vida. Como soldado, estarei sempre pronto a defender o Brasil. Como homem, não deixarei de defender a mulher que amo.
Lucca Michelazzo em depoimento dado a Caio Sartori
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779