Aposta da oposição para desgastar o governo, a CPI do MST na Câmara recebeu, na terça-feira 15, o principal líder sem-terra, João Pedro Stédile, um homem muito próximo a Lula. A audiência foi precedida por temores entre governistas de que a comissão, presidida por Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS) e cujo relator é Ricardo Salles (PL-SP), ambos bolsonaristas, desse ordem de prisão ao militante na primeira oportunidade, sob justificativa de mentir ao colegiado. Embora a chegada tenha envolvido alguma confusão, a oitiva transcorreu sem maiores sobressaltos e pode-se dizer que foi um tiro que saiu pela culatra. Stédile teve palco para defender a reforma agrária e o MST, criticar bolsonaristas e o “agronegócio burro” e até fazer um mea-culpa sobre a invasão de terras produtivas da Embrapa. O depoimento, anticlimático para os opositores, que o enxergavam como um grand finale da CPI, veio em uma semana especialmente crítica ao bolsonarismo, acuado pelas revelações sobre o ex-presidente envolvendo a venda de joias e outros presentes recebidos em viagens oficiais durante o mandato (veja a reportagem na pág. 26).
O momento é mesmo constrangedor para quem prometia fazer a “maior oposição da história” após o resultado das eleições. Derrotado nas urnas, Bolsonaro abandonou o país antes da posse de Lula. Voltou três meses depois, mas não vestiu o figurino de líder de oposição e terminou o primeiro semestre declarado inelegível pela Justiça Eleitoral. No Congresso, deputados de perfil “Centrão raiz” de siglas como PL, PP e Republicanos (a trinca que apoiou Bolsonaro em 2022) passaram a piscar para o atual presidente. Parlamentares das duas últimas legendas, aliás, estão prestes a assumir ministérios. “O avanço do governo sobre partidos que foram aliados de Bolsonaro, o 8 de Janeiro e os recentes infortúnios do ex-presidente praticamente anulam a perspectiva de se ver uma oposição aguerrida”, avalia o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, da FGV.
Uma peça-chave nesse naufrágio da oposição bolsonarista, certamente, é Arthur Lira. A expansão do Centrão pragmático conduzida pelo superpoderoso presidente da Casa reduziu numericamente a legião de parlamentares dispostos a dificultar a vida do governo. A própria CPI do MST ilustra bem isso. Na semana passada, PP, Republicanos e União Brasil trocaram seus membros no colegiado por nomes mais simpáticos ao Palácio do Planalto. O presidente da Câmara anulou a convocação do ministro da Casa Civil, Rui Costa, uma “vitória de Pirro” que a oposição havia saboreado dias antes. A blindagem a um dos mais graúdos auxiliares de Lula foi justificada sob o argumento de que suas atribuições não têm relação com invasões do MST.
Os reveses praticamente enterraram as chances de a CPI ser prorrogada por sessenta dias, o que seria possível se houvesse ambiente político para isso. O melancólico fim ainda não atingiu outra carta na manga que a oposição julgava ter, a CPMI do 8 de Janeiro, mas lá os oposicionistas também não conseguiram impor maiores avarias ao governo — pelo contrário, foi nessa comissão que vazaram informações do Coaf sobre transações em dinheiro envolvendo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e o próprio ex-presidente, e houve depoimentos explosivos, como o do hacker Walter Delgatti Neto, na quinta 17.
As dificuldades da oposição no Congresso se dão até no terreno em que a gestão Lula cambaleou. A tramitação da agenda econômica só deslanchou com a ajuda do Centrão, após o governo acelerar a liberação de emendas, privilegiando partidos como PL, PSD, PP, MDB, União e Republicanos. Principal empreitada legislativa do governo até o momento, a reforma tributária, a propósito, deixou marcas no PL, principal sigla da oposição, cuja bancada deu vinte votos favoráveis ao texto. O racha se mostrou claramente em um grupo de WhatsApp com deputados da sigla, onde houve troca de acusações. Um dos hostilizados foi o deputado Yury do Paredão (CE), que depois foi expulso do PL por aparecer em uma foto “fazendo o L” ao lado de ministros.
Além do partido de Bolsonaro, que é individualmente a maior força da Câmara (elegeu 99 deputados), há poucos grupos engajados na resistência ao governo. O PSDB e o Novo também se anunciam como oposição, mas juntos têm dezessete deputados. Há oposicionistas espalhados em siglas da base, mas ovelhas desgarradas como os deputados Rosângela Moro e Kim Kataguiri, ambos do União Brasil paulista. Alguns avaliam que Arthur Lira, em negociações com o governo, não trata a oposição com a seriedade devida. “Como há dois partidos na oposição, um deles muito pequeno, o Novo, Lira acha que tem que dialogar só com o PL”, afirma o líder oposicionista na Casa, Carlos Jordy (PL-RJ).
Uma resistência poderosa ainda se dá entre os evangélicos. Mesmo lideranças que defendem maior interlocução com o governo têm objeções, a exemplo de Silas Câmara (Republicanos-AM), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, e Cezinha de Madureira (PSD-SP), influente deputado evangélico. “Não temos nenhuma conversa ou contato, não fomos procurados pelo governo”, diz Câmara. Os evangélicos andam furiosos com uma resolução do Conselho Nacional de Saúde que recomenda a legalização do aborto e da maconha, mas as críticas não são só ideológicas. “Estou desde o início do governo pedindo agenda com um ministro do meu partido e ele não dá”, reclama Cezinha, referindo-se a Alexandre Silveira (Minas e Energia). “Já apanhamos demais pelo governo em votações importantes ao país, mas podemos lutar pelo Brasil fazendo oposição”, completa. As negociações do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal, para ter um ministro também provocam tremores internos. O governador Tarcísio de Freitas (São Paulo) ameaça deixar a sigla se houver adesão. A cúpula da legenda tem insistido que o Republicanos seguirá independente.
Se não bastasse, há avaliações reservadas de que os filhos de Bolsonaro com mandato em Brasília, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), têm uma atuação muito mais discreta do que a esperada ante o governo Lula. Com o bolsonarismo na berlinda, a maior oposição no Congresso, mas feita só à base de muita gritaria, tem vindo dos radicais, como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Zé Trovão (PL-SC). Outros bolsonaristas mais experientes estão bastante ocupados com as próprias dificuldades, como Carla Zambelli (PL-SP), enrolada por sua colaboração com o hacker Walter Delgatti Neto, preso pela Polícia Federal. Colegas influentes de Zambelli apostam na cassação de seu mandato.
Notório por comandar oposições ferrenhas no Congresso desde o seu nascimento, como ao votar contra Tancredo Neves e a Carta de 1988, o PT foi uma pedra no sapato dos governos anteriores e posteriores aos seus, mas também enfrentou períodos de baixa, sobretudo quando ficou sob o fogo pesado da Lava-Jato. De novo no poder, os petistas se veem diante de uma oposição precocemente fragilizada, o que preocupa, pois uma democracia viva exige contraponto aos governantes e o debate permanente sobre o país. A estratégia política equivocada de Bolsonaro, a sua retirada do jogo eleitoral para 2026, a incrível sucessão de imbróglios policiais e judiciais no seu entorno e o velho pragmatismo do Centrão sob a batuta pesada de Lira, no entanto, minaram rapidamente “a maior oposição da história”.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855