A Pfizer venceu Bolsonaro
Resiliência empresarial superou um governo que demitiu o bom senso ao preferir cloroquina em vez da vacina
Em maio do ano passado, quando o país contava quinze mil mortos na pandemia, o governo já havia recebido uma oferta de vacinas da Pfizer-BioNTech. Demorou um ano para decidir a contratação.
O primeiro lote, com um milhão de doses, só chegou a São Paulo na noite da última quinta-feira, quando o total de mortes ultrapassava 400 mil — quase o triplo da quantidade de vítimas da bomba atômica em Hiroshima, em 1945.
Carlos Murillo e Márjori Dulcine, executivos da Pfizer no Brasil, estiveram no Ministério da Saúde oferecendo o imunizante, pela primeira vez, em abril de 2020. Em fase de desenvolvimento na Europa e nos Estados Unidos, na época começavam os testes com 43 mil voluntários — entre eles 2.900 brasileiros.
A subsidiária brasileira da Pfizer mostrou resiliência. Enfrentou manifestações de desdém na Esplanada dos Ministérios e na Presidência da República. Os executivos tentavam apresentar uma solução em meio à emergência sanitária, mas eram tratados a “chá de cadeira” em Brasília.
Em setembro, o chefe da Pfizer nos Estados Unidos tentou ajudá-los. Albert Bourla mandou carta a Jair Bolsonaro apelando por uma rápida definição sobre a compra da vacina. Mencionou riscos de escassez, para o Brasil, numa etapa de “a alta demanda” mundial. A decisão presidencial ainda demorou 22 semanas.
Não era caso isolado. O Instituto Butantan, de São Paulo, atravessou todo o segundo semestre oferecendo a CoronaVac. Remeteu à Saúde três propostas de contrato. Só recebeu resposta efetiva em janeiro.
O governo esconjurava as vacinas, enquanto apostava dinheiro público em pílulas miraculosas de cloroquina. Turbinou a fabricação. Aumentou em 30% a produção, que passou da média mensal de 8,9 milhões de comprimidos para 11,6 milhões. No país onde o consumo era de pouco mais de 300 mil unidades por ano, chegou a montar um estoque suficiente para abastecer o mercado nacional por décadas.
Inútil, já se sabia no Palácio do Planalto. Ali, desde o fim do verão, chegavam estudos médicos com alertas sobre ineficácia e riscos em terapias alternativas contra a Covid-19. Mas Bolsonaro insistia na hidroxicloroquina.
Com caixas do remédio sobre a mesa, chegou a reunir meia dúzia de ministros, representantes da Anvisa e médicos para discutir um decreto presidencial impondo o uso das pílulas na rede pública hospitalar como “tratamento precoce” contra o vírus. O texto morreu de inanição política.
Agora, o governo corre atrás dos produtores de vacinas, depreciado pela descrença nas ruas, nas pesquisas, no Congresso e no Judiciário.
O jogo da irracionalidade política derivou numa crise de confiança, cujas consequências devem se espraiar até às eleições gerais de 2022.
Em breve, historiadores devem resgatar a memória dessa crise. Vai-se contar em detalhes como aconteceu a perda de controle da maior tragédia sanitária do século no país equipado com um sistema de saúde de eficiência comprovada na vacinação em massa em emergências epidêmicas — do sarampo à meningite.
Um enigma a ser decifrado é o da suposta fé no milagre em pílulas, em prejuízo do interesse público. Não chega a ser novidade na biografia de Bolsonaro. Cinco anos atrás, quando era deputado, ele comandou o lobby parlamentar da fosfoetanolamina. Mesmo sem base científica, a “pílula da cura do câncer” foi liberada pelo Congresso em lei sancionada por Dilma Rousseff. O Supremo vetou, a pedido de entidades médicas.
Em livro recente, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sugere que a preferência à cloroquina no lugar da vacina teria origem numa nebulosa lógica econômica. Mandetta poderia explicar na CPI, na terça-feira, como e por que o bom senso acabou demitido do governo a que serviu.