O sinistro submundo do Discord, plataforma em alta entre crianças e jovens
Rede mobiliza conversas em família e já é objeto de reuniões escolares, onde a ideia é evitar que a garotada vire alvo de marginais
Visto em tempos passados como uma bolha segura, o quarto dos filhos requer agora, nesta era de muita navegação na internet, cuidados redobrados. O motivo reside nas várias telas que se abrem no computador ou no celular, descortinando infinitas portas para o mundo exterior — com tudo o que há de bom, mas também de preocupante, no voo virtual. De todas as redes, a que mais tem causado inquietação a pais de crianças e adolescentes mundo afora é o Discord, criado nos Estados Unidos em 2015 para agilizar a comunicação em tempo real entre gamers. Mais recentemente, tornou-se onipresente na vida da ala jovem, com seus 150 milhões de usuários, incluindo uma multidão de brasileiros, que entram ali para engatar em chats e participar de comunidades alimentadas por recursos multimídia. Uma parte é fisgada no TikTok e no Twitter, onde recebe convites para ingressar nas chamadas “panelinhas”, salas de bate-papo de acesso exclusivo. E é aí que mora o perigo, já que nesses espaços aparentemente inofensivos grassa um leque de crimes que se valem da falta de filtros e da inocência das pessoas.
Pela elevada incidência de casos que não raro resvalam para as páginas policiais, o Discord mobiliza conversas em família e já é objeto de reuniões escolares, onde a ideia é evitar que a garotada se enrede no submundo alojado na plataforma. O alvo preferencial dos marginais que atuam no app são meninas, que acabam se envolvendo em conversas que soam inicialmente amigáveis. Nelas, vão passando informações pessoais que, em poder dos criminosos, agindo sozinhos ou em bando, se tornam material de chantagem. As jovens se veem obrigadas a mandar fotos e vídeos sem roupa, às vezes em tempo real, sob a ameaça de que façam mal a seus amigos e familiares. O enredo pode ganhar contornos mais assustadores quando as imagens das adolescentes são vendidas no mercado de pornografia ou, pior, se o algoz força um encontro com a vítima, desembocando em histórias de abuso e estupro.
O assunto ganhou tamanha envergadura que motivou uma força-tarefa Brasil afora sob o comando da Polícia Federal em parceria com os estados, e acompanhada pelo Ministério da Justiça. Em 13 de julho, integrantes da pasta se reuniram em Brasília com executivos americanos do Discord, que se comprometeram a tomar medidas práticas. Os representantes da empresa afirmaram, na ocasião, que 65 000 contas brasileiras haviam sido fechadas desde o início do ano por violarem políticas de segurança. A PF tem mantido contato permanente com órgãos dos Estados Unidos que vêm reportando crimes na plataforma, como o FBI, que dissecou o modus operandi das engrenagens criminosas nessa vasta nuvem. A iniciativa já rendeu quinze prisões entre Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Santa Catarina. Há uma sabida subnotificação no número de casos, uma vez que a vergonha freia as vítimas. Mesmo assim, em São Paulo, cerca de cinquenta delas relataram ao Ministério Público estadual terem penado no Discord. “Provavelmente, muito mais gente sofreu ali”, afirma o promotor Danilo Pugliesi.
Não há, evidentemente, redes totalmente blindadas, mas os especialistas detectam no Discord características que o tornam mais permeável a malfeitorias. Com um crescimento da ordem de 170% nos últimos dois anos, ele é composto de uma teia de bate-papos privados, onde se ingressa apenas com convite em forma de link em grupos e subgrupos que compõem um verdadeiro labirinto. É um terreno onde quase não há fiscalização — e o que há é recente e feito via inteligência artificial, sem a peneira de comitês, como em outras redes. O resultado é muito conteúdo impróprio circulando sem ser podado. Outro ponto é que as conversas por vídeo e áudio são instantaneamente deletadas, sem deixar rastros. “É por isso que a maioria das denúncias parte dos próprios usuários”, explica Thiago Tavares, presidente da SaferNet, ONG brasileira que protege os direitos humanos na internet.
Não por acaso, o americano Jack Teixeira, um ex-militar de 21 anos, encontrou no Discord a brecha perfeita para vazar uma batelada de documentos secretos sobre a guerra da Ucrânia pertencentes ao Pentágono, onde trabalhava. A impunidade, felizmente, não durou para sempre: hoje ele está preso. As denúncias, porém, continuam a aparecer. De acordo com o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas dos Estados Unidos, os crimes no Discord escalaram 474% de 2021 a 2022, abrangendo até sequestro.
O maior de todos os grupos já registrado no Brasil, com 7 000 membros, era conhecido como System X, capitaneado por um tal Pedro da Rocha, o King, de 19 anos. Preso no início do mês no Rio, ele atingiu meninas como A.S., 13 anos, desde os 9 no Discord, onde jogava e papeava. Até hoje visivelmente mexida ao reviver o pesadelo, a garota relata a VEJA que Pedro a abordou dizendo ter um punhado de dados sobre ela e sua família e que, se não o obedecesse, ele os disseminaria. “Não o conhecia, mas, quando a gente começou a conversar, gostei dele”, relembra a vítima, que, como todas, mantém o anonimato. “Não sei como obteve meus dados, tinha até endereço, e disse que divulgaria tudo se não mandasse uma foto nua. Eu tinha medo, então mandava”, diz. E assim ficou atada a um ciclo vicioso — caso se recusasse a abastecer o rapaz com imagens íntimas, as anteriores ganhariam os holofotes.
Um mês mais tarde, sufocada pelo cerco, a jovem rompeu o contato com King, e ele a expôs na rede. Só conseguiu cutucar tão dolorida ferida neste ano, quando soube que o rapaz assombrava outras adolescentes. Com o apoio dos pais, formalizou então denúncia na Justiça. VEJA assistiu a um vídeo em que mais uma vítima, O.P., de 16 anos, cai nas garras do “líder”. “O que tenho que escrever?”, indaga ela, antes de entalhar a faca o nome do grupo, uma das sádicas exigências de um esquema que tinha até “sócios” — para aderir ao esquema de maldades, cada um pagava 2 000 reais a King.
O Ministério da Justiça vem cobrando mais rapidez no envio de informações requisitadas pela polícia, mas há dois relevantes obstáculos à presteza. O primeiro diz respeito à legislação brasileira, segundo a qual redes sociais não são obrigadas a reportar à Justiça crimes ocorridos em seus domínios. Além disso, o Discord não possui filial no Brasil, o que dificulta a fiscalização e a tramitação de denúncias e faz com que a plataforma não figure no atual texto do PL das Fake News. “As sanções sugeridas não se aplicam a empresas sem representação no Brasil ou com menos de 10 milhões de usuários por aqui”, esclarece a promotora Fernanda Domingos. Por ora, são 3 milhões os brasileiros na plataforma, que, procurada pela reportagem, não se pronunciou.
À medida que os jovens vão aderindo a esses grupos, mais efervescente se torna o debate em casa, onde os pais já entram ativamente em campo. Não é fácil monitorar a movimentação dos filhos nas redes — isso exige disciplina e algum conhecimento dos recursos para evitar as armadilhas que a toda hora pipocam na tela (veja o quadro). Funcionária pública, Ana Carolina Sampaio, 39 anos, de São Paulo, conta que, preocupada, começou a seguir de perto a rotina on-line de Gustavo, de 13. “A partir de agora, ele só usa o Discord na minha presença”, fala a mãe, que passou a entrar na conta do menino para checar com quem ele interage e excluir contatos de desconhecidos, mesmo sem sua autorização.
Os especialistas recomendam que, para obter resultados em um horizonte mais dilatado, se crie um ambiente de confiança mútua, em que os pais e as crianças possam trazer o tema à mesa. É vital que ele não povoe o escaninho dos assuntos impronunciáveis, sob o risco de que a má conduta virtual se banalize silenciosamente. “É preciso prestar atenção para que não ocorra o que chamamos de comportamento de contágio, quando uma pessoa é incitada a praticar algo que jamais faria”, alerta Rodrigo Machado, do Instituto de Psiquiatria da USP.
Para tentar evitar mais casos, o Discord anunciou a criação de uma nova ferramenta justamente para vigiar a navegação dos filhos no detalhe — é possível saber quando e com quem eles interagem. “Temo ser excessiva no controle, mas crianças não estão preparadas para operar on-line de forma irrestrita”, enfatiza a psicóloga carioca Ana Paula Cordeiro, 42 anos, mãe de João, 13, a quem supervisiona nas redes. O debate desembarcou nas escolas, que assistiram à maciça migração para o Discord nos tempos de pandemia, e contam que a adesão só cresce. Em São Paulo, o Porto Seguro, como outros colégios, tocou no vespeiro em reuniões de professores. “Resolvemos entrar em contato com os alunos para investigar se estavam enfrentando problemas no aplicativo”, diz Joice Leite, diretora de tecnologias educacionais. Não detectaram vítimas. No também paulista Dante Alighieri, uma palestra já dada aos pais iluminou o passo a passo para que crianças e adolescentes não mergulhem no sinistro submundo do Discord. “É urgente discutir como tornar a plataforma um lugar seguro para a garotada”, afirma a diretora-geral de educação Valdenice de Cerqueira. Não há outra maneira de espantar o perigo que mora na tela ao lado.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851