Era apenas uma brincadeira. Corria a década de 90 e a irreverência dos estudantes das universidades americanas criou uma piada para consumo interno — que ninguém ousasse ser politicamente incorreto. A elite branca que então dominava o ambiente acadêmico estava começando a conviver com uma diversidade inédita, conquistada à base de cotas e outros incentivos que traziam para os câmpus estudantes negros, latinos, homossexuais e minorias em geral. E a brincadeira era que ninguém podia ofender a suscetibilidade dos novos matriculados. Marilyn Friedman, militante feminista e autora de um livro sobre o tema, conta que, quando alguém tropeçava em algum tópico espinhoso, os colegas logo diziam, em tom de ironia, que aquilo não era “politicamente correto”. A expressão pegou e logo se politizou.
A natureza ideológica da “correção política” é fruto do tempo. O mundo girou, o “politicamente correto” se universalizou e o que parecia ser uma patrulha do vocabulário, coisa de reacionários, acabou adotado pela esquerda como um meio de proteger a diversidade — e a coisa tornou-se anátema para a direita. Em sua campanha, Donald Trump, presidente da pátria mundial do politicamente correto, comportou-se como seu inimigo. “Recuso-me a ser politicamente correto”, disse Trump, mais de uma vez. É sintomático que Jair Bolsonaro, personificação da direita radical no Brasil, também já tenha dito que essa é “uma das desgraças” do Brasil.
Hoje demonizada pela direita, a linguagem PC adquiriu uma nova conotação: virou conspiração. Os mais conservadores, que não gostam de evitar termos como “judiar” (por ofender os judeus) ou “denegrir” (por ofender os negros), afirmam que existe um movimento organizado para impor uma nova linguagem. “Se existe uma conspiração, não me avisaram”, ironiza o historiador Jaime Pinsky, da Unicamp. “O politicamente correto se origina de uma preocupação legítima de não agredir o próximo.” A mudança no vocabulário não é um conluio espúrio entre espíritos clandestinos, mas sim uma obra coletiva da sociedade. “Não se governa o uso linguístico. Ele vai se moldando pela fala da sociedade”, diz a linguista Maria Helena de Moura Neves, da Unesp.
As tentativas de disciplinar por decreto a adoção do politicamente correto são tão anacrônicas quanto inúteis. Uma das primeiras cartilhas do gênero surgiu na universidade americana de Wisconsin, em 1989. Pretendia censurar o uso de certas expressões. A questão chegou à Suprema Corte americana, que sepultou a tese, considerando que nenhum tipo de linguagem pode ser punido previamente e episódios de preconceito devem ser analisados caso a caso. Isso não impediu que palavras como nigger, pejorativa para negros americanos, entrassem para o rol de vocábulos banidos não pela Justiça, mas pelo senso comum (curiosamente, o epíteto é usado entre os negros). Nos Estados Unidos, até humoristas aderiram à cartilha, mesmo que a contragosto. No Brasil, a piada preconceituosa resiste, mas já não é todo mundo que ri.
Em 2004, o governo brasileiro também criou uma cartilha com 96 verbetes a ser evitados ou substituídos — “prostituta” por “profissional do sexo”; “anão” por “pessoa afetada pelo nanismo”. Diante da chuva de críticas, o documento não vingou. “Quando os dispositivos sociais exigem que se troque leproso, de enorme carga de preconceito, por portador de hanseníase, isso ajuda a diminuir o estigma. Mas permanece o fato de que Jesus, na Bíblia, curou leprosos, e não dá para mexer em um texto de 1 900 anos”, diz o historiador Leandro Karnal, da Unicamp, em um alerta contra certos excessos. Antes rejeitado pela esquerda e hoje açoitado pela direita, sequestrado pelo populismo conservador, conspurcado pela cegueira das diferenças ideológicas, o PC mesmo assim vem conquistando, nestes tempos conturbados, mais alcance e amplitude do que em todas as décadas anteriores. Talvez, para além das ideologias, seja apenas a sociedade falando mais alto.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601