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IA começa a desvendar papiros carbonizados após erupção do Vesúvio

Descoberta pode trazer mais da história à luz

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h54 - Publicado em 19 nov 2023, 08h00

Dolorosa tragédia na sua época, a violenta erupção do vulcão Vesúvio no ano 79 d.C., com jatos de lava e fumaça de até 30 metros de altura, soterrou Pompeia e Herculano, duas cidades próximas a Roma, mas ao mesmo tempo propiciou um quase milagre: a preservação de corpos, moradias e objetos que, ao serem descobertos séculos depois, serviriam de farol para o cotidiano do período clássico da Antiguidade. Descobertos a partir de escavações no século XVIII, os tesouros resguardados seguem sendo mapeados e decifrados, uma obra aberta que caminha junto com os avanços da tecnologia. No mais recente vislumbre desse passado, a inteligência artificial (IA) permitiu que se identificasse uma palavra — porphyras, “roxo” em grego antigo — dentro de um texto ilegível: um pergaminho que virou carvão na biblioteca de uma vila em Herculano.

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FOI AQUI - Imagem recriada da vila que seria do sogro de Júlio César: achado (Rocío Espín Piñar/.)

Há anos que se buscava uma maneira de desvendar o conteúdo dos 800 papiros carbonizados achados no que se supõe ser a biblioteca de Filodemo, filósofo a serviço do dono da vila, provavelmente Piso, sogro de Júlio César. Desenrolá-los era impossível — eles se desintegrariam instantaneamente e virariam pó. As chances aumentaram quando Brent Seales, pesquisador da Universidade de Kentucky que há mais de duas décadas desenvolve técnicas para ler pergaminhos danificados, aperfeiçoou o uso da tomografia computadorizada para entrever o interior das relíquias sem tocar nelas — processo que batizou de “desembrulho virtual”. Com o apoio financeiro de empresas do Vale do Silício, nos EUA, Seales criou então uma competição para ver quem primeiro uniria tomografia e IA para resgatar um trecho dos pergaminhos. Luke Ferritor, 21 anos, aluno de ciência da computação da Universidade de Nebraska, saiu na frente: encontrou as nove letras de porphyras e ganhou 40 000 dólares.

A palavra atiçou a imaginação dos pesquisadores. A cor roxa é citada, por exemplo, nas anotações de Plínio, o Velho, e no Evangelho Segundo Marcos, que descreve como Jesus foi alvo de zombarias por ter vestido roxo antes da crucificação. Haveria alguma ligação? “Cerca de 95% dos documentos do período clássico, um dos mais férteis em matéria de filosofia, foram perdidos. Há, portanto, grande interesse nos que ainda existem”, disse Seales a VEJA. Das mais de 120 peças de Sófocles, só sete sobreviveram inteiras. Dos 142 volumes da História de Roma de Tito Lívio, preservaram-se 35. Como os textos em latim e grego da Antiguidade eram seguidamente copiados, há chance de que os papiros de Herculano contenham descobertas espetaculares. Em 2016, a equipe de Seales “desembrulhou” o que é conhecido como pergaminho En-Gedi, contendo seções do Livro de Levítico. Como havia metal na tinta, ela pôde ser vista nas tomografias computadorizadas. Já a tinta dos escritos de Herculano, à base de carvão e água, é invisível e, por isso, precisa da ajuda da IA, capaz de encontrar padrões em microrrachaduras que eventualmente resultem em caracteres legíveis.

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EURECA! - Da leitura do papiro (acima), que, tocado, se desintegra: surgiu a palavra roxo em grego (abaixo) (Dr. Brent Seales/University of Kentucky; Vesuvius Challenge/.)
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O uso de máquinas para leitura e entendimento de textos antigos vem sendo cada vez mais explorado, não só em documentos onde o texto é de difícil acesso como para acelerar a tradução daqueles elaborados em línguas extintas. Trata-se de um salto espetacular na compreensão dos mistérios do passado remoto. A Pedra de Roseta, fragmento contendo um texto burocrático em três idiomas que serviu de chave para se decifrar os hieróglifos e impulsionar a ciência de egiptologia, foi estudada durante 23 anos até se conseguir elucidar o significado da escrita do Egito antigo.

Em contrapartida, em um estudo publicado neste ano, pesquisadores de Oxford detalham como conseguiram, utilizando inteligência artificial, facilitar a versão de tábuas cuneiformes do acadiano, língua da antiga Mesopotâmia, para o inglês, abrindo caminho para o entendimento de mais de 1 milhão de textos ainda não decifrados. “As máquinas já conseguem distinguir gênero, expressões idiomáticas e exceções às regras dentro da tradução. Mas precisam ser treinadas para melhorar sua precisão”, diz Tom McCoy, linguista da Universidade Princeton. Mais de 1 500 pessoas participam da competição em torno dos papiros de Herculano. Levará o prêmio de 700 000 dólares quem conseguir ainda neste ano recuperar ao menos quatro passagens de 140 caracteres cada uma — o tamanho de um tuíte nos velhos tempos. De palavra em palavra, a Antiguidade vai se desvendando para o mundo moderno.

Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868

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