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Biografia questiona pioneirismo de Santos Dumont, mas não sua genialidade

No aniversário de 150 anos do pai da aviação no Brasil, o livro faz jus ao espírito científico e incansável do inventor

Por Valéria França Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h11 - Publicado em 16 jul 2023, 08h00

Obsessão humana eternizada pelos gregos no mito de Ícaro, o sonho de voar frustrou inventores ao longo da história, incluindo Leonardo da Vinci, o artista que pesquisou e experimentou nas mais diversas áreas. No século XVIII, o avanço da ciência e a Revolução Industrial possibilitaram a construção dos primeiros balões e mais tarde dos dirigíveis tripulados, mas o embrião de um avião só surgiria quase 200 anos depois. E, com ele, a polêmica: quem o concebeu, o brasileiro Alberto Santos Dumont ou os irmãos americanos Wilbur e Orville Wright? Para estudiosos brasileiros, não há dúvida — a autoria cabe ao mineiro Santos Dumont. Nos arquivos da imprensa internacional, há registros de seu aparelho, o 14 Bis, sendo apresentado e aplaudido com entusiasmo. A máquina voadora dos irmãos Wright, seu concorrente histórico direto, de fato alçou voo primeiro, mas sem grande alarde e com grau de autonomia incerto.

RIVAIS - Os irmãos Wright e sua criação: sem registro oficial
RIVAIS - Os irmãos Wright e sua criação: sem registro oficial (Universal Images Group/Getty Images)

No aniversário de 150 anos do pai da aviação no Brasil, a disputa ganha novos ares com a publicação de uma biografia revista sobre o gênio mineiro. Spoiler: o livro contesta o pioneirismo de seu voo — mas nem por isso deixa de fazer jus ao espírito científico e incansável do inventor. Em Asas da Loucura, o jornalista Paul Hoffman, com base em vasta pesquisa realizada em livros, arquivos e museus, reproduz o fascínio despertado por Santos Dumont em Paris nos 22 anos em que morou na França. “Eu o comparo ao Steve Jobs da época, um idealista interessado no design e na beleza da tecnologia, e não apenas em sua utilidade”, disse Hoffman a VEJA. Mas ele não adorna o mito — busca, segundo afirma, dar crédito a quem de fato merece.

INCANSÁVEL - Sempre no ar: no cesto de seu balão em Paris
INCANSÁVEL - Sempre no ar: no cesto de seu balão em Paris (Roger-Viollet/AFP)

Hoffman começou a se interessar pela figura de Santos Dumont ao deparar com um verbete da clássica Enciclopédia Britannica, da qual foi diretor-presidente. “Eu não tinha ouvido falar dele, assim como a maioria dos americanos. Por isso, tive o desejo de fazer com que esse personagem tão interessante fosse conhecido também fora do Brasil”, conta. Santos Dumont fez questão de ter a imprensa noticiosa e científica como testemunha de suas experimentações no tempo que morou na França. Frequentador do famoso restaurante Maxim’s, ainda em atividade, conheceu jornalistas como James Gordon Bennett, proprietário do New York Herald e do Paris Herald, além da nata da aristocracia europeia.

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Filho de um rico fazendeiro de café, o mineiro estudou em colégios particulares, aprendeu cinco línguas, tinha queda por ternos impecáveis e lenços no pescoço e adorava champanhe e festas. Curioso e criativo, instalou um chuveiro de água quente em sua casa em Petrópolis e orientou a Cartier a produzir o primeiro relógio de pulso masculino, o Santos (veja seus inventos). Percorreu os céus de balão e, apaixonado pela engenharia, compartilhou seus projetos aéreos com periódicos científicos como a prestigiosa Science, recém-fundada na época. Em 23 de outubro de 1906, com fanfarra, público e um plano de voo amplamente divulgado, o brasileiro decolou pela primeira vez com um avião, o 14 Bis, nos arredores de Paris, repetindo o voo em 12 de novembro. “Três anos antes, porém, muitas testemunhas assistiram aos irmãos Wright no avião deles em um voo longo e controlado”, diz Hoffman, mais reverenciado biógrafo de Dumont no exterior.

Há quem discorde. O pesquisador Marcos Palhares, que está escrevendo o livro Quem Inventou o Avião?, argumenta que, como prova do feito dos Wright, “existe apenas um telegrama dos irmãos, sobre um voo de 57 segundos, enviado ao pai”. Tanto a mensagem como as imagens do acontecimento foram mostrados apenas em 1908 e os americanos disseram, em sua defesa, que o projeto ficou em segredo porque queriam garantir a patente do Flyer, que saiu em 1905. “Mas a patente é de um planador, não de um avião”, diz Alan Calassa, especialista em réplicas do 14 Bis. Para os historiadores nacionais, sempre faltou apoio do governo brasileiro para que Santos Dumont ocupasse o lugar que lhe é devido, de inventor do avião — ao contrário da propaganda oficial americana. Com ou sem pioneirismo, Asas da Loucura comprova em cada página a genialidade romântica e obstinada do grande inventor mineiro.

Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850

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