Varíola dos macacos dá início a uma nova corrida da vacina
O desafio da ciência é descobrir o verdadeiro impacto do único imunizante disponível contra a doença
Em menos de doze meses, desde o início da pandemia, em março de 2020, a ciência empreendeu uma das mais fabulosas jornadas da história ao criar, testar e oferecer uma vacina contra a Covid-19. Foi um feito sem precedentes, a ser celebrado pelo resto dos tempos. Até então, o desenvolvimento mais rápido de um imunizante ocorrera ao longo de mais de vinte anos, entre as décadas de 40 e 60, período necessário para a preparação da proteção contra o sarampo. As vacinas, nem é preciso sublinhar, são vitais para a sobrevivência humana. Elas nos livram de catástrofes sanitárias que poderiam dizimar populações, como aconteceu com as crises causadas pela varíola, especialmente antes de o inglês Edward Jenner elaborar um método preventivo seguro e escalável, em 1796. Graças à invenção do médico britânico e a uma bem-sucedida estratégia global, a enfermidade foi erradicada em 1980. Agora, o mundo está novamente envolvido na corrida por uma vacina.
Nesse caso, não se trata de conceber algo novo, ou pelo menos não apenas isso, mas de descobrir com urgência o exato potencial de um imunizante existente que, nesse momento, representa a única esperança de controle de uma doença que se espalha rapidamente. A tarefa em questão diz respeito à vacina contra a varíola dos macacos, ou monkeypox, cujos casos chegaram a 35 000 na quarta-feira 17, em 92 países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Causada pelo vírus monkeypox, que dá nome à doença, a enfermidade é endêmica na África e já provocou surtos fora daquele continente, todos celeremente contidos. Neste ano, porém, o vírus adquiriu características diferentes. Chamam atenção a velocidade de transmissão e a alta incidência de contágio por contato durante o ato sexual, majoritariamente os realizados por homens que fazem sexo com outros homens.
As alterações no comportamento do vírus acenderam um alerta entre a comunidade científica. Quando surgiram os casos iniciais, até foi possível respirar com certo alívio já que, ao contrário do coronavírus, o monkeypox era um vírus conhecido e, o melhor de tudo, havia uma vacina. Criada pela empresa dinamarquesa Bavarian Nordic, ela estava licenciada desde 2013 na Europa e no Canadá para uso contra a varíola e, havia três anos, aprovada nos Estados Unidos contra a varíola e a monkeypox. No Canadá, houve liberação para a monkeypox um ano depois e, na Europa, o sinal verde foi dado agora, em 2022. A criação de um imunizante único contra as duas enfermidades foi possível porque os vírus são da mesma família.
Contudo, a progressão acelerada dos casos e as manifestações distintas do vírus obrigaram a OMS a fazer um apelo aos países solicitando que iniciem urgentemente estudos para descobrir as respostas às perguntas que surgiram sobre o imunizante. É ponto pacífico que ele protege, mas o problema é que não se conhece a força dessa proteção. “A verdade é que não sabemos sua eficácia”, diz Ira Longini, da Universidade da Flórida. Também não há informações sobre quanto tempo depois da aplicação há a geração de anticorpos, quanto dura a imunidade ou qual seu efeito quando ministrado em uma ou duas doses (leia mais no quadro).
A falta de conhecimento é resultado da inexistência de pesquisas robustas realizadas antes do surto deste ano. Existem somente trabalhos feitos em animais e poucos ensaios clínicos. Para complicar, as evidências disponíveis tiveram como base investigações realizadas com um vírus diferente daquele que circula hoje. “Pedimos às nações que estão vacinando seus cidadãos para levantar e compartilhar com urgência informações sobre a eficácia do imunizante”, clamou Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS.
Responderam ao chamamento Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Japão, Inglaterra, Espanha e Canadá. Nesse momento, alguns dos principais centros de pesquisas desses países deslocaram forças-tarefas para estudar a vacina, como o que foi feito no desenvolvimento dos imunizantes contra a Covid-19. Da mesma forma, os grupos terão de superar desafios na condução das pesquisas. Um dos principais é a escassez de doses. Até o surto atual, a produção da vacina seguia em ritmo lento. Com a varíola felizmente erradicada e os casos de monkeypox restritos à África, não era interessante aos países desenvolvidos ampliar a compra do produto.
As reservas tinham papel estratégico para o caso de ataques de bioterrorismo usando o vírus da varíola e da necessidade de contenção de raros episódios de monkeypox. O cenário mudou e exige mais transparência. No entanto, muitos países relutam em informar o tamanho exato de seus estoques, apesar do apelo da OMS, e tampouco se propõem a dividir parte do que têm armazenado. A situação é desafiadora. “A certeza é a de que a vacina é a única forma de reduzir a expansão da doença”, diz Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Os problemas existem, mas há evidente otimismo. A ciência já provou que a informação correta, associada a cuidado com a disseminação, além de empenho e investimento nos medicamentos, supera obstáculos. Muito em breve, uma série de conquistas brotarão dos laboratórios, como aconteceu na luta contra a Covid-19. Primeiro veio o isolamento, depois os imunizantes e então, com o contágio controlado, deu-se a suspensão do uso de máscaras em recintos fechados, especificamente em voos e aeroportos. É o que acaba de acontecer no Brasil. Tudo conduzido à luz do conhecimento, apesar da praga do negacionismo. Assim será contra a monkeypox.
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803