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Vacina contra a Covid-19: as doses de incompetência do governo brasileiro

Depois de apostar todas suas fichas em um só fabricante e desprezar a CoronaVac por razões políticas, país tenta recuperar o precioso tempo perdido

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mariana Rosário Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h53 - Publicado em 11 dez 2020, 06h00

Na bem-vinda abertura da era da vacinação para erradicar a Covid-19, o Brasil, por enquanto, está fora da festa. A história poderia ter sido outra, não fosse a idêntica dose de irresponsabilidade que já havia transformado o país em case mundial de fracasso no combate ao coronavírus. A mesma Pfizer que tomou a dianteira no mundo ocidental do esforço de imunização ofereceu por aqui seu produto, desenvolvido em parceria com a BioNTech. Em agosto, em carta encaminhada a Jair Bolsonaro, o CEO mundial da companhia, Albert Bourla, chamava atenção para o estágio avançado dos testes e alertava o presidente de que, diante da forte demanda, seria importante se manifestar sobre o interesse. O executivo lembrou ainda que já havia se reunido com representantes do governo, mas, até aquela data — 11 de agosto —, não havia recebido nenhuma resposta. No mês passado, ao tomar conhecimento da carta, um assessor graduado do Palácio do Planalto conversou sobre o assunto com Bolsonaro, que então teria dado ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o sinal verde para iniciar as conversas com o laboratório. Mas a negociação só começou de fato nas últimas semanas, quando o governo ficou sem alternativas a oferecer a curto prazo à população, enquanto o tucano João Doria avançava de forma célere com seu projeto de pôr no mercado no início de 2021 a CoronaVac, a vacina chinesa produzida em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo. Em dois dias, uma reunião foi marcada com os representantes da Pfizer, que se comprometeram a entregar 70 milhões de doses até o fim de 2021.

Esse caso ilustra como o governo brasileiro vem lidando de forma mambembe com o programa de vacinação. O impacto da gestão errática foi quantificado por um levantamento realizado pela Airfinity, empresa britânica de análises de dados científicos. A pesquisa mostra que o país assegurou 1,3 dose de vacina por habitante, considerando as negociações já fechadas. Trata-se de um cenário preocupante, uma vez que a vasta maioria dos imunizantes requer dupla aplicação para funcionar. Diante do que foi estabelecido até agora, será possível proteger pouco mais da metade da população em um futuro próximo. O Brasil está atrás de nações desenvolvidas como Canadá (onze doses por habitante), Estados Unidos (7,3 doses) e Reino Unido (5,9 doses), mas também faz feio diante de países vizinhos como o Peru (3,5 doses) e Chile (1,6 dose).

ESTRATÉGIA - João Doria: pressão em Brasília para conseguir a aprovação -
ESTRATÉGIA - João Doria: pressão em Brasília para conseguir a aprovação – (Aloisio Mauricio/Fotoarena)

O erro capital do governo foi apostar todas as fichas em uma única vacina, a desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca, sem qualquer garantia de que a aprovação fosse ocorrer, sobretudo em tempo menor do que as outras candidatas. Felizmente, após resultados iniciais, indicou-se que a vacina tem eficácia média de 70%, ou seja, superior ao mínimo de 50% estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Houve, no entanto, um percalço no caminho. A farmacêutica descobriu por meio de um erro de dosagem ao longo dos testes que uma posologia alternativa (meia dose, seguida de uma dose completa) seria mais eficaz do que duas doses cheias, a “receita” de aplicação original. O enrosco científico inspirou dúvidas sobre a viabilidade do estudo entre especialistas do ramo, mas vários cientistas envolvidos no processo no Brasil e no Reino Unido ouvidos por VEJA garantem que esse acidente de percurso não deve atrasar a entrega de documentos nem a produção do imunizante no país e no mundo. Nessa toada, o pedido de autorização à Anvisa para vacinação deve sair até as primeiras semanas de janeiro.

Mas, diante de um eventual atraso da AstraZeneca, o país estaria com pouquíssimas opções para o programa de vacinação contra a Covid-19, uma vez que acordos com outras farmacêuticas foram escanteados por Pazuello ao longo da pandemia, incluindo a Pfizer. Oficialmente, ela havia sido descartada por exigir um regime especial de refrigeração. A vacina acabou voltando à pauta diante da urgência do governo e com a garantia do laboratório de que as remessas serão feitas dentro de caixas com gelo seco. O imunizante tem eficácia de 95%, e já recebeu liberação emergencial no Canadá e nos Estados Unidos, além de um parecer inicialmente positivo junto a Food and Drug Administration, a rigorosa agência de saúde americana. “É possível que alguns países da América Latina recebam as doses ainda em 2020, por terem fechado acordos há mais tempo”, diz Márjori Dulcine, diretora médica da Pfizer. O Brasil ficará para a cota de 2021. Até a tarde da última quinta, 10, o acordo com o Ministério da Saúde ainda não havia sido fechado. O Palácio do Planalto fez uma única exigência para fechar o negócio: que um lote das vacinas chegasse ao Brasil para ser aplicado já no início do ano. A companhia estuda a possibilidade de entregar 1,5 milhão de doses em janeiro, mais 1,5 milhão no segundo trimestre e o restante no segundo semestre.

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ESPERANÇA - AstraZeneca: 70% de taxa de eficácia do novo produto -
ESPERANÇA - AstraZeneca: 70% de taxa de eficácia do novo produto – (Vicenzo Pinto/AFP)

A pressão interna também contou para que governo fosse em busca da Pfizer. Considerado um rival do presidente nas eleições de 2022, João Doria anunciou na segunda passada, 7, que a vacinação começaria em São Paulo em 25 de janeiro com a CoronaVac. O gesto do governador foi calculado para pôr pressão sobre a Anvisa, que vai dar o aval ou não ao imunizante assim que a fase 3 de testes for concluída. Ele provou-se seguro, mas sua taxa de eficácia ainda não é conhecida. Uma pista importante de que o produto é realmente promissor consta em um artigo recente da revista científica Lancet. Segundo ele, a CoronaVac produz anticorpos em 97% dos casos. O imunizante, que já é aplicado em regime emergencial na China em pessoas do grupo de risco, começará a ser utilizado na Indonésia e na Turquia nas próximas semanas.

A finalização dos testes no Brasil ocorrerá até o próximo dia 15, quando serão enviados à Anvisa os documentos restantes para o pedido de aprovação do produto. No mês passado, alguns técnicos da agência inspecionaram a Sinovac, a fabricante da vacina. Conforme antecipou no site de VEJA o colunista Matheus Leitão, cerca de trinta “inconformidades” foram detectadas e devem ser esclarecidas pela empresa chinesa e pelo Butantan nos próximos dias. “Os questionamentos fazem parte do procedimento normal e não devem atrasar o cronograma”, diz o diretor-presidente do Butantan, Dimas Covas. O maior obstáculo a ser enfrentado será mesmo a rejeição de Bolsonaro à ideia de deixar o rival Doria brilhar como o político que trouxe a vacina ao Brasil. O desprezo do presidente pelos avanços da CoronaVac não é nenhuma novidade — ele chegou a comemorar a interrupção dos testes por causa da morte de um voluntário (como se soube depois, o caso era de suicídio) e disse com todas as letras que não compraria a vacina. Internamente, porém, até técnicos da Anvisa admitem que a CoronaVac deve ser o primeiro imunizante a ser validado no Brasil. Apesar disso, ainda há o temor de que pressões políticas atrasem o processo. Em outubro, Eduardo Pazuello chegou a firmar um compromisso de compra, mas foi desautorizado em seguida por Bolsonaro. Na terça passada, 8, em reunião convocada às pressas no Ministério da Saúde com a presença de vários governadores, Doria bateu boca com Pazuello. Caso encontre dificuldades inesperadas junto à Anvisa, o governador paulista pretende judicializar o caso para liberar o medicamento mesmo à revelia da agência. Mas o Palácio do Planalto também se arma diante dessa possibilidade: a Procuradoria-Geral da República e um ministro do STF foram consultados informalmente sobre providências que poderiam ser tomadas caso Doria leve aos tribunais o caso CoronaVac. O governo gostou do que ouviu.

NO MERCADO - Sputnik: programa iniciado na Rússia no último dia 5 -
NO MERCADO – Sputnik: programa iniciado na Rússia no último dia 5 – (Maxim Shipenkov/EFE)

O fato de o Palácio do Planalto gastar alguma energia a esta altura da crise para tentar barrar a aprovação de uma vacina é ainda mais grave quando o próprio governo não se entende com o seu cronograma. Num espaço de duas semanas, o ministro Pazuello anunciou três datas para o início do plano de imunização: começou falando em março, depois antecipou para o fim de fevereiro e, mais recentemente, aventou a possibilidade de começar entre dezembro e janeiro. Confusão semelhante ocorre com os prazos da Anvisa. No meio do ano, a agência chegou a divulgar que poderia fazer a regulamentação de uma vacina em trinta dias — foi esse dado que levou Doria a cravar o 25 de janeiro como data para a CoronaVac —, mas nesta semana Pazuello declarou que esse prazo “gira próximo a sessenta dias”. “Se for isso, atrasa o nosso cronograma”, diz o secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn. Prevendo uma eventual demora, o Butantan não tentará apenas o rito normal para o registro da CoronaVac, mas também o procedimento emergencial. Nesse caso, o processo pode demorar “alguns dias”, de acordo com o diretor da agência, Anderson Barra Torres. Nos bastidores, os técnicos da Anvisa e Butantan falam de quinze a vinte dias.

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A bagunça inspira preocupação diante do desafio que se avizinha: uma robusta campanha de vacinação ao longo de 2021. São quase 300 milhões de doses prometidas para o país, sem considerar as da Pfizer. O novíssimo programa de imunização trará desafios inéditos. “As vacinas compradas têm tecnologias diferentes, por isso não poderão ser misturadas. Será preciso um cadastro individual para garantir que a aplicação de duas doses se dê de forma correta”, alerta a epidemiologista Carla Domingues. Por outro lado, a expertise nacional na área é uma arma poderosa diante desse desafio. Com 47 anos de existência, o programa de vacinação brasileiro tem sucesso ao acessar áreas remotas do país e know-how para gerenciar 38 000 salas de aplicação, estrutura que será fundamental nos próximos meses. As doses a ser aplicadas nas semanas iniciais têm como foco a proteção individual e, por isso, a ideia é cuidar de idosos e profissionais de saúde, grupos com alto risco.

Por uma triste ironia, a farta experiência que o Brasil tem em vacinação falta justamente à maior autoridade do país hoje na área de saúde. O general da ativa Eduardo Pazuello chegou ao posto de ministro — no lugar de dois médicos, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich — por sua alegada especialidade em logística. Até agora, no entanto, esse talento não apareceu. “Inepto” e “pau-mandado” são adjetivos usados por alguns governadores para classificá-lo. Num vídeo constrangedor após ser desautorizado pelo chefe no episódio da intenção de compra da CoronaVac, Pazuello chegou a dizer ao lado do presidente que “um manda e o outro obedece”. Em meio ao recrudescimento da pandemia por aqui, é trágico o país estar tão atrasado e desunido na questão da vacina. Mas ainda há tempo para pôr de pé um bom programa de imunização e iniciá-lo o mais rápido possível. Para isso, é preciso mais doses de ciência — e menos de incompetência política.

Colaboraram Gabriel Mascarenhas e Sofia Cerqueira

Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717

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