Sobrecarregadas, mulheres são principais vítimas da síndrome de burnout
Pesquisas mostram que, sob pressão durante a pandemia, elas chegaram ao colapso
Há algo de paradoxal na situação atual das mulheres. Nunca foi tão intensa a mobilização por equidade com os homens, pelo direito de decidir o que fazer com o próprio corpo e contra a violência de gênero. Ao mesmo tempo, poucas vezes na história elas estiveram tão exaustas pelo acúmulo de funções como mães, parceiras e profissionais e tão pressionadas por uma cultura que exalta a perfeição. Embora as bandeiras estejam aí e um movimento real de mudança ganhe força, ainda permanece uma distância imensa separando o gênero feminino de uma realidade menos pesada e punitiva. A pandemia de Covid-19, claro, contribui para fazer com que a vida delas — ou da maior parte — tenha se transformado em um caos. Ou em um inferno, dependendo do momento. O trabalho em casa, as aulas on-line dos filhos, a louça na pia, o cuidado com os pais e nem um segundo para si próprias levaram as mulheres ao esgotamento.
O retrato da situação está exposto na crueza dos resultados da pesquisa Women in the Workplace 2021, feita pela consultoria McKinsey & Company e pela organização LeanIn. Depois de entrevistarem mais de 65 000 pessoas de 423 empresas nos Estados Unidos e Canadá, os pesquisadores concluíram que 42% das mulheres sofrem com sintomas da síndrome de burnout. Entre os homens, a taxa foi de 35%. Em 2020 e 2019, os índices eram de 32% e 28%, respectivamente. A síndrome de burnout é uma doença dos nossos tempos. Primeiramente observada pelo psicanalista alemão Herbert Freudenberger em 1974, foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como síndrome em 2019. Caracteriza-se pelo cansaço extremo e esgotamento físico e mental resultantes de situações desgastantes ligadas ao trabalho ou relacionadas a altas cargas de stress. Entre os sintomas estão os sentimentos de fracasso e insegurança, insônia, mudanças no apetite e dores de cabeça frequentes. No levantamento realizado pelas consultorias, nada menos do que 50% das mulheres que ocupavam cargos de gerência manifestaram sintomas de forma persistente. Quanto mais elevada a posição na carreira profissional, maiores as responsabilidades, as cobranças e, em milhares de casos, os problemas domésticos.
Aqui a situação não é diferente. Considerado pela International Stress Management Association o segundo país com maior número de pessoas afetadas pela síndrome em 2019, atrás somente do Japão, o Brasil viu subir suas taxas na pandemia. Segundo o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, houve um acréscimo de 21% nos casos de exaustão ligada ao trabalho em comparação com os meses que antecederam a crise sanitária. Outro estudo, executado pela Locked Down, Burned Out e publicado pela editora De Gruyter, na Alemanha em 2020, mostrou que a interrupção de relações importantes para a saúde mental, como a convivência social, e a desigualdade no mercado de trabalho também influem nesses índices. Mesmo com as diferenças diminuindo, as discrepâncias de salário e de tipo de emprego entre os gêneros continuam graves. O mercado brasileiro é um dos mais aviltantes nesse sentido. No relatório Global Gender Gap de 2020, do Fórum Econômico Mundial, o país ocupa a 93ª posição em um ranking que classifica as nações de acordo com a igualdade salarial entre homens e mulheres. A lista tem 153 países.
No seminal livro O Segundo Sexo, lançado em 1949, a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) já intuía que as atribuições sociais dadas ao corpo feminino estariam na raiz da desigualdade de tratamento entre homens e mulheres. “Cuidar de sua beleza, arranjar-se, é uma espécie de trabalho que lhe permite apropriar-se de sua pessoa como se apropria do lar pelo seu trabalho caseiro; seu eu parece-lhe, então, escolhido e recriado por si mesma. Os costumes incitam-na a alienar-se assim em sua imagem.” As palavras de Simone explicam a discriminação persistente à passagem do tempo, com a mulher até hoje submetida a estereótipos que a aprisionam. Os dados trazidos pelas pesquisas sugerem, no entanto, que elas podem estar chegando a um ponto de inflexão. A exaustão de ser quem a filósofa tão bem descreveu está insuportável. Elas não aguentam mais.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759