Riscos de infarto e AVC variam de acordo com horário escolhido para dormir
Estudo realizado no Reino Unido mostra que o período mais adequado para ir para cama é entre 22 e 23 horas
A dormecer quando ainda não é noite alta está longe de ser uma questão de preferência individual. É algo biologicamente mandatório. Ao longo de sua evolução, o ser humano foi sendo talhado para sincronizar suas atividades diurnas e noturnas de acordo com o nascer e o pôr do sol. A alternância entre luz e escuridão a que o homem foi submetido durante centenas de milhares de anos resultou em um preciso sistema por meio do qual o organismo produz as substâncias certas, nas horas certas. O banho da luz matutina estimula a fabricação de hormônios que nos preparam para o dia, como o cortisol. A lenta redução da luminosidade ao cair da tarde é o sinal de que o cérebro precisa para determinar a liberação da melatonina, o composto que induz ao sono, e a gradativa desaceleração do metabolismo até a manhã seguinte, quando começa tudo de novo. Nessa engrenagem, nada é aleatório. Daí a importância de entender mais os mecanismos e benefícios dessa fina sintonia entre o compasso da natureza e a cadência do corpo humano nas 24 horas em que sol e lua se alternam no céu. Tecnicamente, o período se chama ciclo circadiano.
Ele tem tanta importância que os pesquisadores Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash e Michael W. Young ganharam o prêmio Nobel de Medicina de 2017 por descobertas sobre o assunto. Agora, a demonstração mais recente de seu impacto sobre a saúde — e dos prejuízos que podem advir do desrespeito às suas regras — vem de um estudo da Universidade de Exeter, no Reino Unido, com mais de 88 000 pacientes. Pela primeira vez, uma pesquisa dessa dimensão mostrou que o risco de ocorrência de eventos cardiovasculares varia segundo a hora de dormir. De acordo com o trabalho, ir para a cama antes das 22 horas e depois da meia-noite aumenta em 24% e 25%, respectivamente, a probabilidade de episódios de acidente vascular cerebral e infarto. O período mais adequado é entre 22 e 23 horas, momento em que o risco de algum problema de coração chega a apenas 12%. Esses seriam os minutos noturnos nos quais funções do organismo voltadas ao bom funcionamento do sistema cardiovascular estariam sendo executadas em perfeita harmonia.
O levantamento para chegar a essas marcas foi minucioso. O grupo inicial, que forneceu informações por meio de um questionário, era de 500 000 pessoas, das quais exatas 103 712 enviaram dados obtidos por um acelerômetro (aparelho que mede parâmetros manifestados durante o sono) usado durante sete noites. Com exclusões, algumas por informações incompletas ou de má qualidade e outras pela presença de doenças cardiovasculares ou insônia, chegou-se ao grupo de 88 000 pessoas avaliadas. Os dados foram coletados entre 2013 e 2015. Em seguida, deu-se o ajuste de fatores como idade, sexo, índice de massa corporal, duração do sono e condições que interferem na saúde, como diabetes, tabagismo, pressão arterial e níveis de colesterol.
À primeira vista, surpreende a constatação de que adormecer cedo, antes da 10 da noite, é praticamente tão ruim para o coração e o cérebro quanto iniciar o repouso depois da meia-noite. O senso comum é o de que dormir de madrugada não é lá muito natural e, por isso, pode ter efeito negativo sobre o organismo. Mas cerrar os olhos 8 e meia, 9 da noite é encarado como um hábito bacana, saudável. Por que, então, riscos semelhantes? A resposta está na falta de equilíbrio. Simples assim. O ritmo circadiano funciona como o maestro de uma orquestra. Da mesma forma que o regente é guiado pelo conjunto de sons vindos dos instrumentos ao seu redor e tem a sensibilidade de identificar qualquer nota fora do lugar, o relógio biológico é sensível às mudanças de luminosidade, por mais discretas que pareçam aos nossos olhos. Essa é a sua beleza e também sua fragilidade. Quando se dorme cedo demais, não se finalizam operações metabólicas que ainda deveriam estar em curso. No outro extremo, adormecer tarde impede que ciclos importantes ocorridos durante o sono se consolidem, como o processamento da memória, e impossibilita que aconteçam oscilações necessárias, entre elas a queda da pressão arterial e da liberação de insulina, hormônio que permite a entrada da glicose para dentro das células. Em conjunto, tanto as perturbações decorrentes do sono precoce quanto do tardio contribuem para o surgimento ou agravamento da chamada síndrome metabólica. Ela é caracterizada pela presença de cinco condições (obesidade visceral, hipertensão e glicemia, triglicerídeos e HDL colesterol acima dos limites) e está associada a um elevado risco para doenças cardiovasculares. “A confusão sobre o relógio biológico tem consequências adversas para essas enfermidades”, diz David Plans, coautor do estudo.
O alerta gerado pela pesquisa é oportuno. O excesso de exposição a estímulos luminosos, quase sempre a partir de aparelhos eletrônicos, tem hoje vulto assustador. “Tudo funciona 24 horas e ainda temos 20% da população trabalhando em turnos, quando a parte escura das 24 horas é o momento biológico de sono”, diz a neurologista Andrea Bacelar, presidente da Associação Brasileira do Sono. É preciso pontuar que a pesquisa sugere apenas riscos maiores ou menores de acordo com o horário de dormir. Não se pode esquecer que a qualidade do repouso também conta. “Ela é fundamental”, afirma Celso Amodeo, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O segredo, portanto, está na combinação do respeito à fisiologia com uma boa dose de paz. Assim é que se dorme com os anjos.
O CONTRAPONTO DE NOTÍVAGOS GENIAIS
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Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765