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Remédio que reativa ‘guardião das células’ é promessa contra o câncer

Molécula criada no Brasil a partir de uma proteína do veneno de cascavel demonstrou mecanismo de ação surpreendente. Testes buscarão comprovar potencial

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 18 jun 2024, 11h31 - Publicado em 18 jun 2024, 11h11

O empreendedor da área de saúde Moacyr Bighetti acaba de voltar do maior congresso sobre os avanços contra o câncer do mundo, o encontro anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco). Mas não foi até Chicago para apresentar um pôster de artigo científico nem para se atualizar sobre as condutas clínicas. Sua missão principal: reunir-se com representantes de grandes farmacêuticas para apresentar, em detalhes, uma promissora medicação contra tumores sólidos desenvolvida no Brasil.

A história dessa molécula, representante de uma inédita classe de terapias, tem o DNA nacional. Começa quando se descobriu que a proteína do veneno de uma cascavel brasileira, uma crotoxina, tinha atividade antitumoral. No entanto, a substância ao natural é tóxica ao corpo humano. Então, os cientistas capitaneados pela startup PHP Biotech conseguiram reproduzi-la em laboratório – de modo que não é preciso extrair o líquido da serpente – e isolar o pedacinho responsável pela ação contra o câncer.

Nos testes em laboratório, a molécula demonstrou seu potencial especialmente contra o câncer de mama triplo-negativo, um tipo agressivo da doença para a qual há poucas opções terapêuticas. A sacada da inovação é que, em vez de matar as células tumorais por necrose, um processo que desperta muita inflamação e reação adversa (como ocorre na quimioterapia), a candidata à droga as induz a um suicídio programado, fenômeno chamado apoptose. Assim, poupa as células saudáveis do entorno, mirando aquelas que estão por trás do problema.

O percurso para compreender e validar os poderes de um medicamento, porém, não é curto nem tolera atalhos. Precisa respeitar todo um rito científico. E os desafios aparecem, claro. Um deles era entender, com minúcia, como o peptídeo estimula o câncer a implodir. O segundo era encontrar um meio de levá-lo, com precisão, até as células do tumor.

Bighetti foi a Asco contar as descobertas e os avanços que obtiveram até aqui: a criação de um peptídeo ligado a um nanocorpo (já explicamos o que ele vem a ser) com um mecanismo de ação surpreendente – ele é capaz de reativar a proteína “guardiã das células”.

 

asco
Moacyr Bighetti, presidente do conselho da PHP Biotech; Patricia Bezerra, líder das pesquisas; e Robert Gahagen, CEO da startup, no evento da Asco 2024 (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)
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Ao encontro do supressor de tumores

Em meio aos estudos para o desenvolvimento do novo fármaco, Bighetti e os pesquisadores tiveram de dar um passo atrás para alçar dois à frente. Mas foi essa imersão entre tubos de ensaio, culturas de células e equipamentos de ponta, para a qual contaram com parceiros nos Estados Unidos, que permitiu desvendar o mecanismo-chave da molécula. E aí veio a grata surpresa.

“Descobrimos que nosso peptídeo ativa a p53, a proteína produzida pelo gene supressor de tumores. Nenhum tratamento aprovado no mundo hoje tem essa ação seletiva”, conta Bighetti, que é presidente do conselho da PHP Biotech.

Vamos por partes. “O p53 é um gene que codifica uma proteína encontrada no núcleo das células. Ela monitora o DNA em busca de danos induzidos por diferentes fatores, como radiação, tabagismo, álcool, vírus, entre outros. Quando certas alterações no DNA são detectadas, a p53 é capaz de interromper o ciclo celular e impedir que essa célula se replique até que o dano seja corrigido”, explica o oncologista Eduardo Braun, membro do conselho da startup.

“Agora, se o dano for muito grave, a p53 induz a apoptose, a morte celular programada. Assim, evita que células danificadas se multipliquem e formem tumores. Por isso, o gene p53 é conhecido como o guardião do genoma.

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O médico afirma que mais da metade dos cânceres apresentam mutações no gene p53. Sem desempenhar sua função esperada, células anormais conseguem sobreviver e se proliferar, dando origem e combustível aos tumores. Essa é uma das maneiras pelas quais o câncer pode surgir e prosperar.

Daí o potencial despertado pela medicação brasileira em fase de pesquisa pré-clínica – isto é, a etapa anterior aos testes com humanos. “Os estudos indicam que nossa molécula é capaz de restaurar esse efeito de guardião do p53, o que poderá levar ao controle ou morte do tumor”, resume Braun.

Um nanocorpo como meio de transporte

Uma das dificuldades que qualquer novo remédio de ação cirúrgica impõe é como chegar exatamente ao local esperado e concluir a missão programada. Não é moleza escapar à circulação, cheia de células de defesa para conter elementos estranhos ao organismo. Depois disso, é preciso garantir que a medicação se conecte à célula de modo a desatar a resposta desejada.

Pois foi aí que pintou um desafio. O peptídeo antitumoral não poderia fazer o trajeto até o câncer sozinho e anticorpos convencionais não se mostraram os meios de delivery adequados à empreitada.

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Como contornar o obstáculo? Criando um novo transportador e entregador: no caso, um nanocorpo. A molécula diminuta selecionada para os testes tem origem em camelídeos (família da qual fazem parte camelos, dromedários e lhamas), mas foi “humanizada” em laboratório para evitar rejeição. E funcionou!

Nos testes, ela permitiu que o peptídeo cumpra seu objetivo ao acoplar-se à célula do câncer. “Uma vez dentro da célula, ele libera vias de sinalização que estimulam a ativação do p53 e chamam a atenção do sistema imunológico”, conta Bighetti. Nas experiências, além do golpe direto ao tumor, o candidato a tratamento revelou-se um aliado de uma imunoterapia que já está no mercado. “Ele sensibiliza o organismo para a ação de medicamentos como o pembrolizumabe”, destaca o empresário. 

Isso poderá expandir o leque de tumores a serem enfrentados pelo produto em desenvolvimento. “A ideia é testá-lo em tumores sólidos agressivos, entre eles o câncer de mama triplo-negativo”, diz Bighetti. “Inclusive, observamos que ele consegue ultrapassar a barreira hematoencefálica, que protege o cérebro, podendo ser uma opção no tratamento de tumores do sistema nervoso.”

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Próximos passos

A PHP, que detém a patente da inovação, espera publicar em breve os resultados de seu trabalho em periódicos científicos e anuncia ainda para este ano a conclusão da etapa de estudos com animais, a ser realizada nos EUA. Essas investigações terão a missão de mostrar, em modelos vivos, como a medicação se comporta, seus benefícios e riscos.

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Se tudo correr como previsto, Bighetti projeta o início das pesquisas clínicas, com seres humanos, a partir de 2025 ou 2026. O trajeto até o tratamento chegar ao mercado pode ser longo, uma vez que os testes precisarão confirmar sua segurança, eficácia, dosagem e possíveis aplicações e contraindicações.

A molécula resultante da fusão do peptídeo inspirado no veneno de uma cascavel com o nanocorpo já tem até nome: Pepcrotament (“pep” de peptídeo, “crota” de crotoxina e “ment” para se referir a um pedaço de anticorpo).

“Estamos trabalhando no limite da ciência e da tecnologia”, orgulha-se Bighetti, que voltou do congresso da Asco animado com a perspectiva de parceria com grandes farmacêuticas – um passo vital no momento de se fazer os ensaios clínicos, devido ao investimento e à estrutura que serão demandados.

O empresário, os médicos e os cientistas na linha de frente do projeto estão confiantes. “É uma inovação única do Brasil para o mundo que, se tudo der certo, irá suprir necessidades não atendidas hoje para os pacientes com câncer”, diz o presidente do conselho da PHP.

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