Pela 1ª vez, cientistas testarão vacina para prevenir o câncer de mama
O avanço, o maior na área até hoje, abre uma nova frente contra a doença
As vacinas são uma das mais belas criações da humanidade. Uma delas erradicou a varíola, outras derrubaram as mortes por febre amarela, sarampo e meningite e são elas que agora sustentam a volta à vida depois do período mais duro da pandemia de Covid-19. Seu princípio básico de funcionamento é tremendamente simples: estimular o corpo a identificar e combater um agente estranho ao organismo. Baseados nesse conceito, há décadas pesquisadores na área do câncer perguntam-se qual seria o efeito do recurso contra a doença, uma vez que os tumores são conglomerados anormais de células crescendo entre os tecidos, configurando-se, portanto, em algo alheio à natureza dos órgãos. Não tem sido fácil achar a resposta, mas o anúncio feito há duas semanas pela Cleveland Clinic, dos Estados Unidos, mostra que os estudiosos raciocinam no caminho certo.
Considerado um dos melhores do mundo, o centro americano de tratamento e pesquisa em saúde informou o início de um estudo clínico para testar a eficácia e segurança de uma vacina na prevenção e tratamento do tipo mais agressivo de câncer de mama. Se der certo, será o primeiro imunizante capaz de evitar diretamente o surgimento de um tumor. Atualmente, há opções de proteção indireta, como as vacinas de HPV e da hepatite B. A primeira atua sobre alguns tipos do Papilomavírus humano responsáveis por tumores, como o que causa câncer de colo de útero. A segunda protege de infecções pelo vírus da hepatite B, doença que promove inflamação crônica do fígado, tornando as células do órgão vulneráveis à proliferação descontrolada (característica do câncer).
Desenvolvido em conjunto com a empresa Anixa Biosciences, o imunizante será testado contra o tumor de mama triplo negativo. Embora incida sobre no máximo 15% das mulheres com a doença, o triplo negativo é seu gênero mais desafiador. As células doentes não possuem receptores para os hormônios estrógeno e progesterona e não produzem a proteína HER2 (daí o nome triplo negativo). Dessa forma, elas não respondem à terapia hormonal e o remédio desenhado para atuar sobre a HER2 não tem utilidade no seu caso. Se diagnosticado tardiamente, o prognóstico é ruim. “Mas temos esperança de que nosso trabalho seja o início de pesquisas mais avançadas provando a efetividade da vacina para deter o tumor de mama contra o qual temos menos tratamentos disponíveis”, afirmou o hematologista Thomas Budd, do Taussig Cancer Institute, divisão da clínica onde o estudo será executado.
Participarão do ensaio clínico entre dezoito e 24 pacientes que tiveram o diagnóstico do câncer em etapa inicial nos últimos três anos, encontram-se sem o tumor mas apresentam grande risco de recidiva. Até setembro de 2022, quando esse braço da pesquisa será encerrado, cada uma receberá três doses da vacina, aplicadas com intervalos de duas semanas entre cada uma. Nessa fase, o objetivo é examinar a resposta imune desencadeada pela vacina e efeitos colaterais. Ou seja, avaliar o desempenho do imunizante do ponto de vista terapêutico. A análise de seu poder preventivo se dará em passo subsequente, com o recrutamento de mulheres sem câncer, porém com alto risco de desenvolvê-lo e que se submeteram à retirada voluntária das duas mamas como forma de reduzir a probabilidade de aparecimento de células tumorais. O embasamento para a realização dos testes em seres humanos vem de resultados positivos obtidos em mais de uma década de pesquisa em laboratório e em cobaias. O estudo central foi publicado em 2010 na revista científica Nature. No artigo, os cientistas demonstraram que a vacina preveniu o surgimento ou impediu o crescimento do tumor em animais.
As vacinas como as conhecemos são feitas para provocar uma reação consistente de defesa do corpo contra um agente infeccioso. Convencionalmente, faz-se isso apresentando ao organismo o vírus ou a bactéria que se pretende combater nas formas inativa ou enfraquecida, mas suficientes para alertar o sistema imunológico sobre a invasão e estimulá-lo a conter o inimigo. Há cerca de um ano, o mundo conheceu outra tecnologia, a do RNA mensageiro (mRNA), usada na produção das vacinas contra a Covid-19 da Pfizer-BioNTech e da Moderna. Nesse caso, usa-se material genético criado em laboratório para ensinar as células humanas a fabricar uma proteína originalmente feita pelo vírus ou bactéria em questão. Assim, o corpo também aprende a reconhecer como ameaças a molécula e o vírus, consequentemente. Se for infectado pelo microrganismo, irá combatê-lo.
Quando se fala em imunizantes contra o câncer, a questão é mais complexa. Embora o fundamento seja o mesmo, os alvos a serem acionados para alertar o exército de defesa não são facilmente identificáveis. Uma vez que o câncer surge a partir das nossas próprias células, é difícil para o sistema imunológico enxergar as proteínas produzidas. Por isso é árduo o trabalho para encontrar a substância específica, produzida por cada tumor, capaz de despertar o sistema imunológico. A vacina desenvolvida na Cleveland Clinic superou o obstáculo ao ter como endereço uma molécula presente em 70% das células tumorais de mulheres com câncer de mama triplo negativo. Além disso, a instalação e o crescimento do tumor denunciam que o sistema imunológico não está tão forte assim e que a dose para fortalecê-lo pode ser tão intensa quanto inviável. Esses obstáculos explicam a pequena quantidade de vacinas disponíveis. As poucas opções são restritas a tumores graves, como a Provenge, para pacientes com câncer de próstata que não responderam a tratamentos anteriores, e a T-VEC, aprovada para tratar o melanoma, o tipo mais agressivo de câncer de pele, em fase avançada.
No entanto, o salto no conhecimento das características dos tumores tem impulsionado as pesquisas. No registro de estudos clínicos em andamento nos Estados Unidos, há dezenas envolvendo vacinas dirigidas a tumores de pulmão, de fígado e de intestino, entre outros. Um dos mais interessantes é conduzido no Memorial Sloan Kettering, em Nova York, onde se testa a eficácia de um imunizante feito com tecnologia mRNA contra o tumor de pâncreas. Os médicos descobriram o alvo certo ao investigar por que alguns raros pacientes sobreviviam por mais tempo que a média. Havia neles uma molécula tão distinta das demais que servia de chamariz para o sistema de defesa. O objetivo da vacina é ensinar as células tumorais dos outros pacientes a produzir moléculas iguais a ela. No Texas, o Centro de Nanomedicina desenvolve nanovacinas que sirvam como base para imunizantes contra leucemias e linfomas. O novo caminho finalmente está aberto.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763