Os novos conflitos domésticos da vida entre quatro paredes na quarentena
Nunca foi simples dividir as tarefas do cotidiano com a atenção aos filhos e ao cônjuge. Mas o isolamento tem revelado dificuldades inéditas de convivência
Escrito em 1944, o drama teatral Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre (1905-1980), rapidamente saiu das altas-rodas da intelectualidade francesa, embebida da beleza da narrativa de três personagens trancados em um quarto, metáfora das trevas, para conquistar imenso apelo popular — deu-se o salto, que reverbera até hoje, em virtude de uma máxima filosófica: “O inferno são os outros”. O inferno sempre são os outros, e os momentos de dificuldades parecem multiplicar essa impressão. Não é fácil um casal, uma família, estar dentro de casa, em confinamento — entre quatro paredes, para não perder o tom da prosa —, e manter o bom humor, o respeito. Foi sempre assim, o trancamento a serviço de explosões mercuriais.
É tema que, em alguns casos brilhantemente, em outros como pastiche, conduziu filmes de sucesso como A Guerra dos Roses (1990) e Sr. & Sra. Smith (2005). Há um sem-fim de atalhos para acender o rastilho de pólvora, e um muito frequente, contumaz, é a conciliação entre o cotidiano doméstico e os filhos. Dá briga. Uma pesquisa feita pelo instituto americano Morning Consult, a pedido do The New York Times, mostrou que a árdua tarefa de lidar com a educação das crianças tem sido interpretada de modo diferente pelos cônjuges. Quando se indaga aos maridos quem ajuda mais, 45% dizem ser eles. A mesma pergunta feita às mulheres entrega outra resposta: elas afirmam cuidar de 80% das atividades com os filhos. Ou seja: no mundo pandêmico, tudo leva a crer que as tarefas estão sendo compartilhadas como sempre foram, desigualmente (salvo as louváveis exceções) — ou então há percepções diferentes, irreconciliáveis.
Quando as coisas degringolam, atreladas à história que já crescia antes do vírus, dá-se o pior dos cenários, com o apagar das chamas, e o que era infinito deixa de sê-lo. Um levantamento feito por VEJA mostrou que o número de novos processos de separação em escritórios de advocacia cresceu 20% desde o começo do isolamento, comparado ao mesmo período do ano passado. “Os discursos são parecidos, as pessoas relatam estar sufocadas, sentindo-se aprisionadas nas relações”, diz Luiz Kignel, especializado em direito de família e sócio do escritório PLKC, de São Paulo. Novos tempos são sinônimo de novas situações, para além dos transtornos habituais. Um desembargador da 2º Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu recentemente que um casal em conflito que dividia o apartamento na Zona Norte de São Paulo teria de manter a distância de um cômodo a fim de romper o ciclo de desavenças então recorrentes no período de isolamento social, enquanto ambos trabalhavam em home office. Caso a medida fosse descumprida, seria necessário pagar uma multa de 500 reais a cada vez que o espaço fosse invadido.
É, naturalmente, fenômeno global, chamariz para inéditas saídas. No Japão, uma empresa passou a oferecer apartamentos mobiliados no estilo Airbnb a pessoas descontentes com o matrimônio para que pudessem passar um período, digamos, de quarentena, para “esfriar a cabeça” antes de decidir, de vez, pelo fim da relação. Um badalado casal brasileiro, formado pelo youtuber e humorista Whindersson Nunes e pela cantora Luísa Sonza, casados há dois anos, não aguentou o tranco do trancamento. Publicamente, a culpa foi colocada no lockdown doméstico — antes, com agendas atribuladas e distintas, tocavam o barco cada qual a seu modo. A união forçada desandou o acordo. “O confinamento pode dificultar muito a vida em um relacionamento, é saudável e desejado tentar buscar algum tipo de distanciamento do parceiro durante o dia”, diz Helio Roberto Deliberador, professor do Departamento de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Outro atalho de pacificação, e que vale para a vida, é o equilíbrio.
Ele é fundamental para manter de pé acordos de guarda compartilhada e pensão alimentícia dos filhos de casais já divorciados. Principalmente quando o combinado começa a ruir em decorrência de percalços no novo cenário. É o que aconteceu com o médico cardiologista Fabio Vivian Ferreira. Ele está há dois meses sem conseguir visitar a filha de 2 anos que mora com a mãe, no Estado de Goiás. Pelo aumento drástico na carga de trabalho e pela evidente dificuldade de viajar neste período, o único jeito de manter contato com a menina é por meio de videochamadas, que ocorrem em dias preestabelecidos. A solução, no entanto, tem problemas. “É um pesadelo, as chamadas nem sempre funcionam bem e sinto que estamos perdendo nossa conexão”, lamenta ele, que procurou sua advogada para aconselhar-se sobre como negociar melhores horários e regras para o encontro virtual. Em situações como essa, dizem os especialistas em família, impera em primeiro lugar o bem-estar da criança. “É preciso propor a harmonia de todos os envolvidos, ainda mais em um período de pandemia. Apesar do atual momento, a criança sempre terá o direito de convivência com os dois pais”, diz o advogado Renato de Mello Almada, do escritório Chiarottino e Nicoletti. O diálogo, a cautela e a paciência são armas fundamentais em tempos tão difíceis — sobretudo entre quatro paredes, para que o inferno não sejam os outros.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687