‘O pior da prisão com o pior do hospício’: o que ainda acontece nos manicômios judiciários
Inspeções do CFP apontam violência, uso de choque e superlotação; STF analisa constitucionalidade da lei que prevê fechamento dessas instituições
Diego* viveu por mais de três décadas em um manicômio judiciário, também conhecido como Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Lá desde os anos 1990, cumpria uma pena que se renovava automaticamente: a cada dois anos, os laudos repetiam a mesma frase — “apresenta grande periculosidade e deve permanecer internado” — mesmo sem episódios que justificassem a continuidade da sua reclusão.
O destino parecia selado até que, em 2023, entrou em vigor a Resolução nº 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O texto reconhece que pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial têm direito a tratamento de saúde, não à privação de liberdade, e determinou o fechamento das unidades de custódia. Com isso, Diego* passou a viver em uma residência terapêutica e a frequentar um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). A história dele faz parte do mais recente Relatório de Inspeção Nacional elaborado pelo CNJ e pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Embora a resolução esteja ativa há dois anos, o processo de desinstitucionalização tem sido lento. Ainda há mais de duas mil pessoas vivendo sob reclusão nessas instituições, destinadas a pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes e foram consideradas inimputáveis pela Justiça, ou seja, inaptas a responder pelo crime devido à sua condição mental. Os crimes variam de homicídios a ocorrências menores, como furtos cometidos durante surtos.
A Lei nº 10.216, de 2001, conhecida como Lei Antimanicomial, já previa que o tratamento em saúde mental deveria ocorrer, preferencialmente, em liberdade, por meio de serviços comunitários e terapêuticos. No entanto, ela não abordava especificamente a situação das pessoas em conflito com a lei. É justamente aí que entra a Resolução nº 487/2023: o texto obriga o Judiciário a substituir as internações em manicômios judiciários por medidas terapêuticas integradas à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e proíbe a manutenção dessas pessoas em instituições de caráter asilar, ou seja, locais de confinamento sem reintegração social.
Da superlotação ao choque
Na teoria, o modelo busca unir segurança e cuidado. Na prática, porém, como aponta o relatório, o que prevalece é uma lógica que vai contra a prevista pela Lei Antimanicomial, com práticas que se aproximam do confinamento típico de manicômios. Em inspeções realizadas pelo CFP e CNJ em unidades localizadas nas cinco regiões do país, foram encontradas violações como uso de eletroconvulsoterapia (choque) sem indicação clara, óbitos devido a altas doses de medicamentos, agressões mesmo em momentos de crise e restrição ao acesso à água potável como forma de punição.
“Este segue sendo o manicômio judiciário no Brasil: o pior da prisão com o pior do hospício”, diz o documento.
Além disso, as inspeções encontraram:
Condições sanitárias precárias: ambientes mofados, celas com infiltração, banheiros sem portas, chuveiros quebrados, colchões rasgados e roupas de cama sujas; em alguns casos, falta de controle de pragas, com presença de baratas e ratos, ausência de licenças de funcionamento e alagamentos dentro de dormitórios/celas.
Superlotação: pessoas dormindo no chão ou em colchões no chão, com pouca circulação de ar e iluminação insuficiente. Alguns relataram dormir no ‘couro do bode’ (a parte do colchão arrancada).
Falta de acessibilidade: ausência de rampas, corrimões e banheiros adaptados, tornando inviável o deslocamento de pessoas com deficiência física.
Internações indefinidas: pessoas sem pena definida ou cumprimento de medidas de segurança por períodos muito superiores à pena máxima prevista para o crime cometido.
Ausência de atividades terapêuticas: inexistência de oficinas, atendimentos de reabilitação ou acesso regular a terapias ocupacionais e esportivas; restrição à circulação para fora das celas.
Uso abusivo de contenções físicas: amarração de internos em camas ou cadeiras por longos períodos, inclusive como punição. Também há relatos de exposição a gás de pimenta em momentos de crise.
Uso excessivo de substâncias químicas: administração de medicamentos em doses elevadas para sedar e imobilizar, sem acompanhamento adequado e, muitas vezes, sem consentimento. “Uma das pessoas afirmou ter permanecido por três meses sob efeito de contenção química, sem conseguir se mover ou alimentar-se sem ajuda, configurando hipersedação prolongada e risco à vida”, descreve o relatório.
Violência institucional: relatos de agressões físicas e verbais, segregação em celas de isolamento, revistas vexatórias a familiares, como por exemplo necessidade de familiares precisarem ficar nus, e violação de correspondência.
Abandono e rompimento de vínculos: ausência de políticas de contato com familiares, visitas restritas ou inexistentes, e falta de articulação para reinserção social.
Segundo Alessandra Almeida, presidente do CFP, o “duplo estigma” que recai sobre pessoas com transtornos mentais ou deficiência psicossocial em conflito com a lei é o principal entrave para a implementação plena da resolução. “Existe toda uma construção histórica de periculosidade e desinformação que vem atravessando o processo de desinstitucionalização dessas pessoas”, diz Almeida. Esse estigma, de acordo com ela, se manifesta não apenas na sociedade, mas também no próprio sistema de justiça e em profissionais da saúde — algo constatado pelo próprio CNJ.
“Nem todos conhecem as normas, os dados e a ciência que embasam o cuidado, e a desinstitucionalização pode, em certa medida, assustar, porque se baseia em princípios diferentes da lógica punitiva que a sociedade ainda carrega”, diz a presidente do CFP.
As cenas encontradas durante a inspeção, na opinião dela, remetem à Idade Média, época em que a compreensão sobre os transtornos mentais era praticamente nula — algo especialmente grave e contraditório no Brasil, país signatário de diversas convenções e tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. “É muito chocante chegar a um lugar, se deparar com uma pessoa em surto psicótico e constatar que o espaço entende que isso será resolvido com violência, isolamento ou com camisa de força medicamentosa, em que é tanto, mas tanto remédio, que a pessoa chega a óbito”, detalha Almeida.
A resolução de 2023 prevê que os manicômios judiciários sejam totalmente encerrados até 2026 — ou seja, já no próximo ano. Para Almeida, o prazo é realista e suficiente. “A desinstitucionalização está em andamento, nós temos visto. Mas exige esforço político, investimentos e engajamento da sociedade. Vale lembrar que a resolução do CNJ apenas reafirma a Lei Antimanicomial, de 2001, que já preconizava o tratamento em liberdade e em serviços comunitários. Ou seja, estamos falando de um processo que, na prática, já tem quase 30 anos e ainda precisa de atenção e compromisso para se consolidar.”
Para a presidente do CFP, os impactos dos manicômios judiciários vão muito além dos internos. O primeiro efeito, diz ela, é a desumanização da pessoa que está internada e também da sociedade que permite que isso aconteça. “Não há como desumanizar um ser humano sem se desumanizar. A permanência nesses espaços cronifica a condição do indivíduo e adoecem também os profissionais que atuam ali. Esse não é um espaço de cuidado nem de trabalho saudável.”
Discussão vai parar no STF
Com a chegada do prazo que marca o fim dos manicômios judiciários, o tema voltou a ganhar atenção no Supremo Tribunal Federal (STF). Na quarta-feira, 6, a Corte interrompeu o julgamento de ações que questionam se a resolução do CNJ, de 2023, é, de fato, constitucional.
Partidos e entidades — inclusive médicas — contestam a regra, alegando que ela poderia representar risco à segurança pública. A oposição também questiona se a resolução deve ser aplicada a todos da mesma forma, considerando a gravidade do crime, e se há, de fato, infraestrutura no Sistema Único de Saúde (SUS) para o acolhimento e tratamento necessários. Há ainda preocupação com a proximidade dessas pessoas com pacientes psiquiátricos “comuns”, que não cometeram crimes, argumentando-se que elas têm necessidades especiais. Além disso, em alguns casos, há resistência dos próprios familiares em receber essas pessoas de volta.
O julgamento foi pausado porque o ministro Flávio Dino pediu mais tempo para analisar o caso – ele tem até 90 dias para devolver a decisão ao plenário. Antes disso, dois ministros já tinham se manifestado: o relator, Edson Fachin, e o presidente do STF, Luís Roberto Barroso.
Em seu voto, Fachin afirmou que os manicômios judiciais são um modelo antigo e incompatível com os direitos fundamentais garantidos pela Constituição e por tratados internacionais. Segundo ele, “o ordenamento jurídico não permite que avaliações psiquiátricas baseadas apenas no conceito de periculosidade justifiquem internações por tempo indeterminado”. Barroso concordou integralmente com o voto.
Enquanto não há uma decisão final, os manicômios judiciários continuam funcionando em vários Estados. A justificativa principal é que a rede de saúde ainda não consegue receber todas as pessoas que estão internadas nesses locais.
No dia 8 deste mês, o CNJ enviou três documentos ao STF para embasar a decisão. Entre eles está o relatório da inspeção realizada nos manicômios judiciários ainda ativos, elaborado em parceria com o Conselho Federal de Psicologia. Os outros dois documentos mostram que, em 11 Estados, a desinstitucionalização já está em andamento. Em cidades como Ceará, a transferência das pessoas dos manicômios para unidades de tratamento terapêutico já foi concluída, demonstrando que é viável substituir essas instituições por alternativas comunitárias e hospitalares.
No voto, Fachin defendeu que a norma continue valendo, mas sugeriu ajustes práticos. Por exemplo, quem decide a alta dos pacientes não deve ser apenas a equipe médica, mas o juiz responsável pelo caso. Ele também propôs que o prazo para fechar os manicômios não seja rígido, permitindo que cada Estado avalie se está pronto para substituir essas instituições por cuidados em liberdade.
Com a pausa no julgamento, ainda não há uma decisão final. Para que o STF decida se a norma do CNJ será mantida ou alterada, serão necessários pelo menos seis votos favoráveis ou contrários à proposta do relator.
Saúde diz estar pronta para receber pessoas que deixam hospitais de custódia
Questionado sobre a estrutura para lidar com a transferência de internos dos manicômios judiciários, o Ministério da Saúde afirmou que, em parceria com o CNJ, desenvolve ações para o acolhimento gradual de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei. A pasta destacou que, entre 2022 e 2024, os investimentos em saúde mental cresceram 38%, passando de R$ 1,6 bilhão para R$ 2,2 bilhões.
“Atualmente, 33 equipes do SUS trabalham exclusivamente na inclusão desses indivíduos no sistema, elaborando projetos terapêuticos personalizados para atender às necessidades específicas de cada pessoa. Conforme estabelece a Resolução CNJ nº 487/2023, cada encaminhamento é definido individualmente, com base em relatório terapêutico e decisão judicial”, informou o órgão.
O ministério ressaltou ainda que o Brasil possui uma das maiores redes públicas de saúde mental do mundo, com 6.508 pontos de atenção em funcionamento, sendo 3.061 deles Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). “Todos os CAPS estão aptos a oferecer acompanhamento terapêutico às pessoas que deixam os hospitais de custódia da Justiça”, destacou o MS.







