Novas pesquisas trazem descobertas concretas para combater a dor
Após séculos sendo negligenciado, o sofrimento enfim ganha a atenção dos médicos
Historicamente, a dor sempre foi vista por médicos como algo secundário ou apenas como uma chateação manifestada por pacientes inquietos. Pois nos últimos anos uma nova geração de especialistas iniciou uma revolução na forma de encarar esse sofrimento ao trazer à luz o mais robusto conhecimento já produzido sobre o tema e lançar os holofotes sobre um ângulo tão negligenciado quanto vital: o exercício da empatia no trato com os doentes, ressaltando o aspecto humano, que jamais deveria ter sido deixado de lado. Hoje, eles recebem atenção como nunca antes e seus incômodos, de intensidades e origens as mais distintas, são objeto de uma enxurrada inédita de pesquisas. A contar os progressos que pouco a pouco vêm sendo registrados, não vai demorar muito para que o adeus à dor seja uma conquista real para milhares de indivíduos no mundo todo.
Dois fatores pesam de maneira decisiva para tão relevante chacoalhada. O primeiro diz respeito a uma mudança de mentalidade dos profissionais de saúde, sobretudo entre os médicos. É com satisfação que o anestesiologista George Freire, coordenador da equipe de Controle de Dor do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, relata o surgimento de cursos na graduação, de uma pós-graduação específica sobre o tema e de entidades para reunir estudiosos do assunto que tanto mobiliza grandes expoentes da área médica. Tudo isso compõe uma bem-vinda novidade, sendo um divisor de águas. “Comparado ao passado, caminhamos bastante”, avalia.
Tamanha evolução faz parte de um fenômeno maior de modernização global na própria formação médica, que atualmente preconiza a importância da humanização nos tratamentos e do entendimento da saúde como um estado não só de bem-estar físico, mas também mental e espiritual. Em um editorial histórico publicado há dois anos, a revista científica The Lancet lembrou a comunidade científica da urgência em virar a chave no jeito de lidar com a dor dos pacientes. O texto informava que a sensação era a primeira causa de procura de atendimento e a maior responsável pelos afastamentos do trabalho. Sua forma crônica, quando persiste por mais de três meses, aflige inacreditáveis 30% da população mundial e, se não assistida adequadamente, oferece graves riscos à saúde da mente. Os autores encerraram o editorial clamando por ações: “A dor crônica é real e merece ser tratada com mais seriedade”.
Outra questão fundamental para o enfrentamento desse mal perturbador gira em torno da compreensão muito mais sofisticada do que é e como se manifesta a dor. Em 2020, após quatro décadas, a Associação Internacional para o Estudo da Dor atualizou sua definição com base em pesquisas que ganharam velocidade nos últimos tempos. A principal entidade da área pontificou que a dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável que pode ou não estar ligada a uma lesão nos tecidos do corpo — um contraste em relação ao conceito anterior, que limitava a sensação a uma consequência de um dano físico que necessariamente precisava ser descrita pelo paciente. A virada permitiu incluir na lista das pessoas que necessitam de tratamento aquelas que relatam dor mesmo sem apresentar sinais físicos que a justifiquem ou as que não conseguem expressar o que sentem. Além disso, a designação atual considera a dor uma experiência pessoal influenciada por fatores biológicos, psicológicos e pelo histórico individual. O relato de cada um, enfatiza a entidade, “deve ser respeitado”.
Em paralelo à evolução na definição da dor e no modo de se aproximar de quem é alvo dela, uma segunda revolução está em marcha: a que se volta para a ciência de como mitigar o incômodo ou mesmo lhe conferir um ponto-final. Sabe-se hoje que as principais dores são enxaqueca, lombalgia e aquelas causadas por câncer. Em relação a cada uma delas, houve avanço considerável. A boa notícia, no caso da enxaqueca, foi a chegada de medicamentos que impedem a ocorrência de crises ao atuarem sobre pontos específicos, responsáveis pelo desencadeamento da dor. O maior salto quanto à dor nas costas reside na constatação de que, em 85% das vezes, ela tem origem desconhecida, o que levou à conclusão de que apenas 15% dos pacientes apresentam problemas que demandam correção cirúrgica. O restante pode ser tratado com fisioterapia, exercício físico e terapia psicológica, em especial a cognitivo-comportamental. Está comprovado que essa modalidade ajuda a identificar e modificar pensamentos que servem de gatilho para comportamentos que cristalizam situações negativas, o que contribui para a lombalgia.
As dores resultantes do câncer são recorrentes e sofridas — e também aí a ciência vem desbravando caminhos para abrandá-las. “A Organização Mundial da Saúde estima que 66% dos doentes com tumores em estágios avançados tenham dor de nível moderado a intenso”, informa o anestesiologista João Valverde Filho, do Núcleo de Movimentos Anormais e Dor do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. O alívio é proporcionado à base de remédios, adoção de terapias como ioga e acupuntura e, quando preciso, intervenções mais invasivas, como o implante de eletrodos na medula que impedem a transmissão dos sinais de dor ao cérebro. Mais recentemente, tem-se destacado o uso da maconha medicinal tanto para debelar a dor do câncer quanto para outras aflições crônicas. Na Cannect, plataforma que une médicos, pacientes e fornecedores de medicamentos, 30% dos doentes adotam a Cannabis medicinal para tratar patologias acompanhadas de dor. “Há evidências de eficácia em casos de enxaqueca, neuropatias e artrose”, diz o cirurgião Rafael Pessoa, diretor-médico da empresa. Pelo caminhar da ciência, a dor, que entrou definitivamente no escaninho dos males a serem atacados, tem tudo para, em um futuro não tão longe assim, deixar de atormentar a humanidade.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794