Mercado da beleza movimenta bilhões, mas boa parte dos brasileiros corre riscos
54% dos cidadãos com 16 anos ou mais — o que corresponde a cerca de 90 milhões de pessoas — nunca visitaram o médico especialista em pele

Cuidamos como nunca da aparência física. Tanto é que nosso país só perde para os Estados Unidos no número de procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos de cunho estético. Mas, do outro lado do espelho — e da própria carne —, temos muito o que melhorar. A contradição é nítida: ainda que o mercado da beleza movimente bilhões, insuflado pelas redes sociais, mais da metade dos brasileiros nunca sequer consultou um dermatologista. É o que revela, de forma preocupante, um levantamento inédito realizado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e pelo Instituto Datafolha, em parceria com o Grupo L’Oréal. O estudo de abrangência nacional acusa que 54% dos cidadãos com 16 anos ou mais — o que corresponde a cerca de 90 milhões de pessoas — nunca visitaram o médico especialista em pele. Por outro lado, 41% do público entrevistado relatou a presença de alterações cutâneas, nas unhas ou nos cabelos nos doze meses anteriores à pesquisa. Sinal de que há uma demanda reprimida por atendimento, seja por falta de acesso a profissionais, seja por desconhecimento e negligência.
Um dos diagnósticos para o descompasso é que muita gente ainda acha que zelar pela aparência é sinônimo de preservar o tecido que reveste o corpo. Uma confusão potencialmente perigosa. Milhares de pessoas buscam aplicações de cremes, peelings e bioestimuladores em clínicas de estética, ao mesmo tempo que ignoram os sinais de alerta de doenças dermatológicas — como pintas estranhas e feridas que não cicatrizam — e deixam de lado um check-up médico periódico. “Quando indicados e realizados por profissionais habilitados, não há problema algum com os procedimentos estéticos. Só não se deve reduzir o cuidado com a pele a esse aspecto”, diz a dermatologista Regina Carneiro, secretária-geral da SBD.

Consultas rotineiras com essa especialidade não são um luxo. Muito além das rugas e manchas, há mais de 3 000 condições que prejudicam a pele. O encontro com o dermato, portanto, é uma oportunidade de rastrear problemas pelo corpo inteiro — do fio de cabelo às unhas dos pés — e detectar situações que merecem investigação ou tratamento. Não se resume, portanto, a medidas de skincare. Fora isso, não raro, alterações cutâneas refletem enfermidades sistêmicas. “Uma unha frágil ou uma queda de cabelo podem sinalizar desequilíbrios hormonais, nutricionais ou autoimunes. Não se trata só de saber que produto usar”, afirma Regina.
Ainda assim, o desconhecimento sobre o papel do dermatologista é significativo. Para começar, 17% dos entrevistados não associam essa especialidade à medicina, confundindo suas atribuições com as de outros ramos, como o dos esteticistas. Essa visão pouco nítida dá margem a outro fenômeno atual: a realização de técnicas invasivas por profissionais sem formação e capacitação para tanto. “É comum ver pessoas que não são da área de saúde se aventurando nesses procedimentos”, diz a médica da SBD.
Se não bastasse há quem ainda gaste uma fortuna com novos cosméticos impulsionados por influenciadores sociais ou apele a receitas caseiras disseminadas pelo TikTok, correndo o risco de mascarar problemas de pele mais sérios ou desenvolver lesões severas devido a fórmulas ou ingredientes desconhecidos. “A pele não é só um cartão de visitas. É um órgão com funções vitais, e tudo que colocamos nela pode ser absorvido e impactar a saúde”, reforça Regina.
Além de noções culturais equivocadas, a distância do dermatologista também se faz sentir pela dificuldade de acesso no Brasil. A pesquisa indica que quase 60% das pessoas negras nunca foram ao especialista, ante 42% das brancas — indício inequívoco da desigualdade. “Não podemos subestimar a importância do SUS, que atende a maioria da população, mas faltam especialistas na rede”, diz o dermatologista Vidal Haddad Junior, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Há longas filas de espera para consultas envolvendo as doenças cutâneas mais diagnosticadas no país, segundo outro inquérito da SBD — a lista inclui acne, psoríase, dermatite e até câncer de pele (veja mais no quadro). O fortalecimento do sistema público de saúde, portanto, é uma das chaves para abrir caminho a um atendimento dermatológico mais presente e eficiente. “Essa é a melhor forma inclusive de evitar que problemas simples evoluam para quadros graves e onerosos”, diz Carlos Barcaui, presidente da SBD. Eis um dilema que continua cravando fundo, não só à flor da pele.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953