Infertilidade aumenta no mundo e impõe novos desafios à ciência
Uma em cada seis pessoas tem ou terá dificuldades para ter filhos. Enquanto pesquisadores buscam respostas, dispara a procura por métodos de laboratório
Na República autocrática e teocrática de Gilead, o epicentro da série O Conto da Aia, inspirada no romance da escritora canadense Margaret Atwood, apenas um grupo restrito de mulheres preserva a capacidade de perpetuar a espécie depois de a humanidade enfrentar uma crise de fertilidade causada pela exposição a substâncias tóxicas. A dificuldade de gerar filhos, que não poupa os homens, ajuda a criar, então, uma sociedade fundamentalista, em que moças são subjugadas e violadas sexualmente para ofertar seus rebentos à aristocracia que domina o sistema. O mundo contemporâneo está longe ainda dessa ficção — e talvez ela nunca seja real —, mas é inescapável lembrar de Aia depois da leitura do mais recente relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a infertilidade. Hoje, um em cada seis adultos não consegue conceber antes de pelo menos um ano de tentativas, índice inédito. Nesse sentido, o planeta está realmente menos fértil. E atenção: o fenômeno não está atrelado à decisão cada vez mais frequente e global de postergar a concepção dos bebês. O problema é de saúde.
Para chegar a esse diagnóstico, a OMS se debruçou sobre mais de 12 000 pesquisas, em todos os continentes, até consolidar uma robusta revisão com base em 133 estudos populacionais realizados entre 1990 e 2021. Descobriu-se, na média, que 17,5% das pessoas têm algum grau de infertilidade — taxa superior ao que os especialistas em reprodução humana imaginavam. Isso significa que, se nenhum acompanhamento ou tratamento médico for feito, esses homens e mulheres não conseguirão ter sua prole. É questão que extravasa o foro íntimo. “A minha esperança é que governos utilizem esse relatório como parte de seus esforços para fortalecer sistemas de saúde e para ajudar as pessoas a cumprir suas intenções de fertilidade e viver vidas mais saudáveis”, escreveu o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
A discussão em torno da busca por métodos capazes de aumentar as chances de concepção está em alta nas últimas três décadas e envolve questões biológicas, sociais e econômicas. Fato: a probabilidade de mulheres terem filhos cai vertiginosamente após os 35 anos. É obra da natureza. Os óvulos, cujo estoque limitado é determinado ao nascer, perdem o potencial de fecundação com o passar do tempo, tornando a gestação um sonho distante. A história recente mostrou que, com a ingressão massiva de mulheres no mercado de trabalho e o uso crescente de anticoncepcionais, muitas delas empurraram para mais tarde a gravidez e acabaram se deparando com desafios só contornados por meio de intervenção médica. “O fenômeno não tem a ver só com a idade dos casais”, diz Pedro Augusto Monteleone, presidente da Comissão de Reprodução Humana da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Homens e mulheres estão se expondo a mais condições que interferem na fertilidade, como tabagismo, consumo de álcool e infecções sexualmente transmissíveis.
Aliás, foi-se o tempo em que a culpa pelo filho que não vinha recaía apenas no colo feminino. Os machos também penam com os fatores que diminuem o sucesso reprodutivo. Um estudo recente registra uma queda de 51% na quantidade de espermatozoides por mililitro de sêmen entre amostras de homens adultos com mais de 35 anos comparadas entre 1973 e 2018. Há uma série de hipóteses que procuram explicar essa “pandemia” de infertilidade. E, como sinaliza um artigo científico do grupo Nature, é um desafio distinguir influências biológicas daquelas socioeconômicas e comportamentais entremeadas nessa história.
Os cientistas acreditam que, além da gestação tardia, fatores ambientais como a exposição à poluição e aos disruptores endócrinos — compostos presentes em plásticos e já banidos de produtos infantis — interfiram no balanço hormonal que viabiliza a reprodução. Na lista das causas estão a obesidade, o sedentarismo e o estresse (outras epidemias), o uso indiscriminado de esteroides anabolizantes (cuja prescrição para fins estéticos acaba de ser proibida pelo Conselho Federal de Medicina) e os efeitos colaterais de tratamentos contra o câncer, doença que atinge cada vez mais jovens.
Em paralelo, depois da II Guerra, começou a haver uma mudança na ideia de organização das famílias. Com as mulheres fora de casa e o receio de novas privações, os lares cheios de crianças encolheram. E a tendência, como quase tudo, foi globalizada. No Brasil, a taxa de fecundidade caiu de 6,2 em 1960 para 1,8 em 2010 — e deve chegar a 1,5 em 2030. Eis a inevitável inversão da pirâmide populacional, que desperta debates sobre a falta de mão de obra e o rombo previdenciário no futuro.
O cenário poderia ser catastrófico não fossem os avanços da ciência. O mais emblemático de todos nasceu em 1978 das mentes brilhantes de Robert Edwards (1925-2013) e Patrick Steptoe (1913-1988), que desenvolveram a técnica de fertilização in vitro (FIV) e trouxeram ao mundo a britânica Louise Brown, que celebrará 45 anos em julho. A invenção foi laureada com o Prêmio Nobel em 2010 e mudou a vida de milhões de casais, antes desgastados com a incerteza da concepção e do nascimento de um bebê. Hoje, ao lado de outras tecnologias que ganham popularidade, a FIV e a inseminação artificial provocaram uma mudança no conceito de planejamento familiar.
Se antes ele era permeado apenas por ideais de contracepção, agora também é pautado pela necessidade de se pensar na preservação de gametas ou embriões. A solução, nesses casos, é o congelamento das células em laboratório: assim, o desejo de ter um bebê pode ser concretizado em sintonia com a carreira e projetos pessoais.
Um gargalo na democratização desse sonho ainda é o acesso. Os valores para a realização dos métodos de estimulação, congelamento e as taxas de manutenção giram em torno de 15 000 reais — e os gastos se agravam quando é preciso fazer mais de uma tentativa de FIV. “Ainda que dê para os casais se planejarem, vemos um grau de endividamento entre muitos deles”, diz Daniel Zylbersztejn, coordenador médico do Fleury Fertilidade. Não à toa, os especialistas que lidam com a frustração, a ansiedade e até a depressão dos pacientes defendem o acesso nas redes pública e privada às técnicas de reprodução assistida. “A infertilidade tem de ser regulamentada como doença e receber o devido suporte, porque já consta na Classificação Internacional de Doenças (CID)”, diz Zylbersztejn.
Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), até é possível fazer o procedimento, mas o fluxo de atendimento não supre a demanda. Na esfera privada, clínicas estão criando formas de facilitar o pagamento, enquanto empresas passam a fornecer um auxílio para custear o tratamento a funcionárias. Lá fora, no Japão, conhecido pelo déficit de bebês, o governo passou a cobrir 70% dos custos com FIV. Em Israel, o Estado garante o procedimento para os primeiros dois filhos do casal ou para mulheres de 18 a 45 anos que querem ser mães.
Do primeiro bebê de proveta até os dias de hoje, fica evidente que, apesar das transformações e desafios sociais, boa parte dos cidadãos não quer abrir mão de ampliar a família. Prova disso é que o mercado de tratamento para infertilidade, estimado em 1,6 bilhão de dólares em 2022, deve saltar para 2,8 bilhões em 2030. É pouco provável que um planeta com 8 bilhões de habitantes caminhe rumo à esterilidade — apesar das teorias da conspiração. “Hoje temos a ciência a nosso favor”, afirma Alvaro Ceschin, presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida. Ainda que o mundo de O Conto da Aia esteja felizmente distante, é prudente se sintonizar com os alertas reais dos pesquisadores e criar meios de restringir a impossibilidade de ter filhos à peça de ficção.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838