Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br
Semana do Professor: Assine VEJA por 9,90/mês

Indústria do álcool não é ‘parceira’ contra o alcoolismo

Com discurso filantrópico, empresas do setor alcooleiro se infiltram em políticas públicas, universidades e espaços de inovação para moldar agenda da saúde

Por Ilana Pinsky/Revista Questão de Ciência*
7 ago 2025, 10h00

Esta é uma história sobre como a indústria do álcool atua no Brasil. Sobre como entra, com verniz técnico e discurso filantrópico, em programas públicos que poderiam ser eficazes — mas que acabam diluídos, desarticulados e, no limite, inócuos. Sobre como se infiltra em universidades, eventos de tecnologia e parcerias com governos, vendendo a imagem de um setor moderno e responsável, interessado em mitigar os danos do próprio produto. Só que não é nada disso. O que se vê são operações estratégicas de relações públicas, disfarçadas de política de saúde. O caso do programa Modera SP, da Prefeitura de São Paulo, é exemplar.

Há amplo consenso entre pesquisadores e instituições de saúde: o consumo de bebidas alcoólicas é um problema central de saúde pública no Brasil. Ainda que existam limitações metodológicas em algumas pesquisas nacionais, como cobertura desigual e falta de padronização, os dados disponíveis são suficientes para dimensionar a gravidade do problema.

Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o álcool custa R$ 18,8 bilhões por ano ao país em 2019. Desse total, R$ 1,1 bilhão foi gasto diretamente pelo SUS com internações e procedimentos, enquanto R$ 17,7 bilhões referem-se a perdas indiretas, como absenteísmo, aposentadorias e mortes precoces. Análises recentes também mostram que as doenças não transmissíveis (DNTs) associadas ao álcool foram responsáveis por 8,48% das mortes e 7% dos anos de vida perdidos por incapacidade (DALY) entre os homens. Entre as mulheres, os índices foram de 1,33% das mortes e 1,6% dos DALYs. Esses impactos são atribuídos, principalmente, a transtornos relacionados ao uso de substâncias, doenças hepáticas e diversos tipos de câncer.

Embora os maiores impactos ainda recaiam sobre os homens, há uma tendência preocupante de aumento do consumo entre mulheres. De 2006 a 2023, o Vigitel, um sistema de pesquisa por telefone mantido pelo Ministério da Saúde, mostrou crescimento constante no consumo abusivo feminino (quatro ou mais doses em uma única ocasião), fenômeno com repercussões graves, incluindo maior risco para câncer de mama e efeitos mais intensos e precoces do álcool no corpo feminino.

Por outro lado, sabemos, há décadas, quais são as políticas públicas mais eficazes para reduzir o consumo de álcool em nível populacional. As chamadas três melhores compras (3 Best Buys), recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), são: aumento de impostos, redução da disponibilidade do produto e restrições à publicidade e ao marketing. São medidas simples, baratas e baseadas em evidências sólidas. A principal barreira para sua implementação, mundialmente e no Brasil, é a oposição e lobby fortíssimos das indústrias de bebidas alcoólicas.

Continua após a publicidade

Há também intervenções clínicas com potencial, como o modelo SBIRT (triagem, intervenção breve e encaminhamento), indicado principalmente para pessoas que consomem álcool em níveis excessivos, mas que não atendem aos critérios de dependência (que se chama atualmente transtorno do uso do álcool). A proposta é, em teoria, simples: um profissional de saúde aplica um questionário padronizado para rastrear o nível de consumo de álcool do indivíduo, oferece uma devolutiva breve — e não julgadora — com o objetivo de aumentar a conscientização e estimular a motivação para mudança e, quando necessário, encaminha para tratamento especializado. Embora promissor, o SBIRT só tem impacto significativo quando incorporado de forma rotineira aos serviços de saúde, com fluxos bem definidos de encaminhamento e cuidado continuado.

Nos últimos anos, surgiram versões digitais da intervenção, como o e-SBIRT — ferramentas automatizadas via aplicativos ou chatbots. No entanto, seus resultados têm sido, no máximo, modestos e de curta duração, especialmente quando não há articulação próxima e efetiva com a rede de saúde. Essas limitações são amplificadas quando a estratégia é tratada como substituta de políticas estruturais, e não como componente complementar.

É exatamente essa inversão de prioridades que se observa no Modera SP, lançado pela Prefeitura de São Paulo com o objetivo de “reduzir o consumo nocivo de álcool” por meio de uma intervenção breve automatizada. Apesar do discurso ambicioso, o programa não apresenta dados concretos sobre sua efetividade: quantas pessoas completaram a triagem? Qual a porcentagem de encaminhamentos bem-sucedidos? Quantas reduziram de fato o consumo? Quantas mantiveram a redução do consumo após alguns meses? Sem indicadores claros de resultados, o que se tem é um projeto diluído, com foco mais na forma do que no impacto.

Continua após a publicidade

Participaram da idealização do Modera SP profissionais com vínculos estreitos com a indústria de bebidas, particularmente com a Ambev (cervejaria que pertence à maior produtora global dessa bebida, a AB Inbev). Há um quadro clássico de conflito de interesse. A literatura científica, assim como a OMS, é clara: quando representantes da indústria participam da formulação de políticas públicas sobre o consumo de seus próprios produtos, há risco real de distorção das prioridades. Políticas com evidência robusta são deixadas de lado em favor de intervenções de baixo impacto — mas de alto retorno reputacional para a indústria.

Um exemplo disso foi a participação da equipe do Modera SP no Web Summit Rio (um grande evento de tecnologia), em abril de 2025, onde apresentou-se o projeto como um “caso de sucesso” de parceria público-privada apoiada pela Fundação AB InBev, com base em “protocolos validados pela OMS”. A fala, amplamente repercutida na imprensa, criou uma ponte artificial entre a maior fabricante de bebidas alcoólicas do mundo e a principal autoridade global em saúde — sem que houvesse, de fato, qualquer vínculo direto. Ao mesmo tempo, termos genéricos como “consumo consciente” e “uso moderado” são repetidos sem definição clara ou respaldo em evidências de mudança real de comportamento.

Postagens da própria Fundação AB InBev no LinkedIn dão o tom: o foco é a reputação. Em 2024, a fundação se disse parceira do Modera SP, destacando que a ferramenta estaria “disponível para 4,5 milhões de usuários”. Mas nada foi dito sobre quantas pessoas realmente usaram a plataforma, quantas foram beneficiadas ou se houve mudança concreta no padrão de consumo.

Continua após a publicidade

Essa é a verdadeira função de programas como o Modera SP para a indústria de bebidas alcoólicas: gerar uma cortina de fumaça em torno da indústria, com o verniz de inovação tecnológica e legitimidade acadêmica. Enquanto a Ambev investe bilhões em publicidade e em estratégias para aumentar a venda de bebidas — inclusive entre jovens e em eventos populares como o Carnaval —, sua fundação declara, com tom filantrópico, estar “reduzindo o consumo prejudicial de álcool globalmente”. Análises de dados sobre consumo mundial de álcool mostram que uma grande parte das vendas das indústrias vem exatamente desse uso prejudicial. Um estudo internacional aponta que esse total é de cerca de 50% das vendas em países desenvolvidos e próximo de 66% em países de renda média. Essa dicotomia não é coincidência — é estratégia. E não pode passar despercebida.

O Brasil já caiu nessa armadilha antes. A indústria do tabaco, por décadas, tentou se manter à mesa de negociação das políticas de controle do fumo. Só quando foi efetivamente excluída da formulação das políticas públicas — em consonância com a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da OMS — é que o país conseguiu implementar medidas que surtiram efeito.

O mesmo vale para as bebidas alcoólicas. Se quisermos enfrentar com seriedade os danos à saúde, à economia e à vida social causados pelo consumo excessivo, precisamos garantir que as políticas públicas sejam desenhadas com base em evidências — e não em estratégias de relações públicas da indústria.

Continua após a publicidade

O Modera SP é um exemplo didático de como políticas públicas bem-intencionadas podem ser distorcidas para servir a uma operação estratégica de relações públicas: posicionar a própria indústria como uma interlocutora legítima na discussão sobre saúde pública. Trata-se de uma distorção grave. A indústria do álcool não é, nem pode ser, tratada como parceira na promoção da saúde. Seu objetivo, afinal, é vender mais de um produto sabidamente danoso, com alto potencial de dependência e responsável por uma ampla carga de doenças, mortes e custos sociais.

Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de “Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis” (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS, além de professora da Universidade Colúmbia. É colunista de saúde mental da revista Veja. Siga a autora no Instagram: @ilanapinsky_

Compartilhe essa matéria via:
Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

OFERTA RELÂMPAGO

Digital Completo

A notícia em tempo real na palma da sua mão!
Chega de esperar! Informação quente, direto da fonte, onde você estiver.
De: R$ 16,90/mês
Apenas R$ 1,99/mês
ECONOMIZE ATÉ 41% OFF

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 7,50)
De: R$ 55,90/mês
A partir de R$ 32,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$23,88, equivalente a R$1,99/mês.