Em meio a surto de sarampo, EUA pretendem investigar relação entre vacinas e autismo
País registra mais de 200 casos da doença, enquanto novo secretário de saúde, de ideologia antivacina, quer mais estudos sobre segurança dos imunizantes

Parecia um assunto encerrado. Mas a história se repete – como farsa. O suposto (e já negado) elo entre a vacinação e o desenvolvimento do autismo voltou aos holofotes, mas agora revestido de pompa oficial pelas mãos do governo americano. Os Centros para Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos EUA, sob o comando de um político antivacina, o secretário de saúde Robert Kennedy Jr., planejam realizar um novo estudo para investigar uma possível associação entre o uso de vacinas e o aumento no diagnóstico de autismo.
Soa irônica, senão temerária, a ideia que chegou à imprensa americana: os EUA vivem um surto de sarampo, com mais de 200 casos notificados entre o Texas e o Novo México. Ao menos duas pessoas morreram – uma criança e um adulto não vacinados. Em meio à crise, marcada por rejeição de cidadãos à imunização e ao anúncio de cortes em programas públicos de estímulo à medida, doenças infecciosas podem se alastrar.
Um mapa elaborado pela Universidade de Nebraska, nos EUA, permite visualizar a região de maior risco para o surto:

Ainda assim, em vez de concentrar esforços na contenção do problema e na vacinação — única estratégia que comprovadamente evita moléstias como o sarampo, altamente transmissível e potencialmente fatal –, a administração de Donald Trump volta a lançar dúvidas sobre os benefícios das vacinas, enfatizando suspeitas infundadas da sua ligação com o autismo.
Especialistas veem o cenário com extrema preocupação. “Em vez de investimentos em produção e desenvolvimento de vacinas, bem como o combate à hesitação vacinal, projeta-se um gasto de dinheiro num assunto largamente estudado e para o qual a ciência já tem uma conclusão: vacinas não causam autismo“, diz a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).
“Uma série de pesquisas, com dados de milhares de pessoas, já foi realizada nesse sentido e não trouxe resultados negativos ou duvidosos para as vacinas”, completa a professora da Universidade Colúmbia, nos EUA.
“Há uma relação muito forte entre essa ideia de que vacinas causam autismo e a redução efetiva de níveis de vacinação. Esse é um dos maiores desafios de saúde pública hoje, porque a gente acaba permitindo que doenças controladas ou erradicadas voltem a se manifestar”, afirma o psicólogo, ativista e especialista em autismo Lucelmo Lacerda, autor do livro recém-lançado Crítica à Pseudociência em Educação Especial (Luna Edições).
Mas de onde tiraram essa história de que vacinas, sobretudo a do sarampo, provocariam autismo?
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A teoria da conspiração
Embora desconfianças e movimentos contra a vacinação tenham eclodido antes disso, o grande argumento ligando uma vacina, a do sarampo, ao maior risco de desenvolver autismo na infância veio à tona em 1998. Mas ele se baseia numa fraude completa.
Naquele ano, o ex-médico britânico Andrew Wakefield publicou, na respeitada revista científica The Lancet, um pequeno estudo insinuando que a vacina tríplice viral, aplicada em bebês para conferir proteção contra sarampo, caxumba e rubéola, estaria por trás do aumento nos casos do distúrbio.
Ocorre que, como se esclareceu depois, o artigo era baseado em dados adulterados. Wakefield, na realidade, havia patenteado antes disso outra vacina para sarampo e tentava usar sua “pesquisa” para destronar a fórmula clássica.
Após uma investigação, o estudo foi retratado, despublicado e, mais tarde, o britânico teve sua licença médica cassada. “No início, Wakefield não era um ativista antivacina, algo que ele virou depois. Só queria ganhar dinheiro com sua própria vacina”, conta Pasternak.
Quando a farsa foi desmascarada, já era tarde demais. A descoberta mentirosa ganhou o noticiário e a boca do povo, plantando dúvidas e receios entre os pais de crianças em idade escolar. “Logo depois começou a ser registrada uma redução drástica na vacinação, bem como a hesitação vacinal”, recorda Lacerda. O estrago estava feito.
Quem quiser entender essa história tenebrosa em detalhes deve ler Contra a Realidade – A Negação da Ciência, Suas Causas e Consequências (Papirus), escrito por Natalia Pasternak e o jornalista científico Carlos Orsi, que tem um capítulo a respeito. Eis um trecho:
“Nos anos passados entre a publicação do artigo e sua retratação, diversos pais e mães encontraram naquela vacina uma ‘explicação’ para o seu sofrimento e o de seus filhos. Uma resposta para a pergunta: ‘por que isso aconteceu comigo?’ Celebridades como os atores Jim Carrey e Jenny McCarthy abraçaram a teoria de Wakefield e se transformaram em grandes defensores da causa antivacinação. As taxas de vacinação começaram a cair no mundo todo e surtos de sarampo se tornaram frequentes (…)”
O desserviço do ex-médico transformou-se em teoria da conspiração, abraçada por pais e mães aflitos, mas também por personalidades e políticos. Um deles é hoje o secretário de saúde dos EUA. Alguém que, tudo leva a crer, mobilizará uma caça às bruxas a um dos maiores bens da medicina, as vacinas.
Apelo à vacinação
Tendo diagnóstico de autismo e um filho autista, Lacerda, que atua nas redes sociais para desmistificar a condição, ressalta a urgência de não se dar ouvidos à pseudociência que circula pela internet. “A vacinação é importante inclusive para pessoas em alguma situação de vulnerabilidade, e as crianças autistas estão nessa categoria. Portanto, temos uma responsabilidade ainda maior em efetivar a vacinação nesse contexto”, afirma.
“Precisamos de um alto número de pessoas vacinadas para que a imunização, enquanto fenômeno social, funcione”, enfatiza o psicólogo. Calcula-se que 83% das crianças pelo mundo tenham tomado a primeira dose da vacina contra o sarampo e somente 74% a segunda dose. A meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) é 95%. Sim, continuamos aquém…
Como se sabe, vírus não respeitam fronteiras geográficas. Então a ameaça e as precauções se estendem aos brasileiros.
Eis o desafio no horizonte. Se desacreditarmos as vacinas, a história também pode se repetir como tragédia.