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Em meio a surto de sarampo, EUA pretendem investigar relação entre vacinas e autismo

País registra mais de 200 casos da doença, enquanto novo secretário de saúde, de ideologia antivacina, quer mais estudos sobre segurança dos imunizantes

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 mar 2025, 14h26 - Publicado em 13 mar 2025, 11h42

Parecia um assunto encerrado. Mas a história se repete – como farsa. O suposto (e já negado) elo entre a vacinação e o desenvolvimento do autismo voltou aos holofotes, mas agora revestido de pompa oficial pelas mãos do governo americano. Os Centros para Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos EUA, sob o comando de um político antivacina, o secretário de saúde Robert Kennedy Jr., planejam realizar um novo estudo para investigar uma possível associação entre o uso de vacinas e o aumento no diagnóstico de autismo.

Soa irônica, senão temerária, a ideia que chegou à imprensa americana: os EUA vivem um surto de sarampo, com mais de 200 casos notificados entre o Texas e o Novo México. Ao menos duas pessoas morreram – uma criança e um adulto não vacinados. Em meio à crise, marcada por rejeição de cidadãos à imunização e ao anúncio de cortes em programas públicos de estímulo à medida, doenças infecciosas podem se alastrar.

Um mapa elaborado pela Universidade de Nebraska, nos EUA, permite visualizar a região de maior risco para o surto:

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Texas e Novo México são os estados americanos afetados pelos casos de sarampo (Mapa: Universidade de Nebraska/Reprodução)

Ainda assim, em vez de concentrar esforços na contenção do problema e na vacinação — única estratégia que comprovadamente evita moléstias como o sarampo, altamente transmissível e potencialmente fatal –, a administração de Donald Trump volta a lançar dúvidas sobre os benefícios das vacinas, enfatizando suspeitas infundadas da sua ligação com o autismo.

Especialistas veem o cenário com extrema preocupação. “Em vez de investimentos em produção e desenvolvimento de vacinas, bem como o combate à hesitação vacinal, projeta-se um gasto de dinheiro num assunto largamente estudado e para o qual a ciência já tem uma conclusão: vacinas não causam autismo“, diz a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

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“Uma série de pesquisas, com dados de milhares de pessoas, já foi realizada nesse sentido e não trouxe resultados negativos ou duvidosos para as vacinas”, completa a professora da Universidade Colúmbia, nos EUA.

“Há uma relação muito forte entre essa ideia de que vacinas causam autismo e a redução efetiva de níveis de vacinação. Esse é um dos maiores desafios de saúde pública hoje, porque a gente acaba permitindo que doenças controladas ou erradicadas voltem a se manifestar”, afirma o psicólogo, ativista e especialista em autismo Lucelmo Lacerda, autor do livro recém-lançado Crítica à Pseudociência em Educação Especial (Luna Edições).

Mas de onde tiraram essa história de que vacinas, sobretudo a do sarampo, provocariam autismo?

+ LEIA TAMBÉM: As novas descobertas da ciência sobre o autismo

A teoria da conspiração

Embora desconfianças e movimentos contra a vacinação tenham eclodido antes disso, o grande argumento ligando uma vacina, a do sarampo, ao maior risco de desenvolver autismo na infância veio à tona em 1998. Mas ele se baseia numa fraude completa.

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Naquele ano, o ex-médico britânico Andrew Wakefield publicou, na respeitada revista científica The Lancet, um pequeno estudo insinuando que a vacina tríplice viral, aplicada em bebês para conferir proteção contra sarampo, caxumba e rubéola, estaria por trás do aumento nos casos do distúrbio.

Ocorre que, como se esclareceu depois, o artigo era baseado em dados adulterados. Wakefield, na realidade, havia patenteado antes disso outra vacina para sarampo e tentava usar sua “pesquisa” para destronar a fórmula clássica.

Após uma investigação, o estudo foi retratado, despublicado e, mais tarde, o britânico teve sua licença médica cassada. “No início, Wakefield não era um ativista antivacina, algo que ele virou depois. Só queria ganhar dinheiro com sua própria vacina”, conta Pasternak.

Quando a farsa foi desmascarada, já era tarde demais. A descoberta mentirosa ganhou o noticiário e a boca do povo, plantando dúvidas e receios entre os pais de crianças em idade escolar. “Logo depois começou a ser registrada uma redução drástica na vacinação, bem como a hesitação vacinal”, recorda Lacerda. O estrago estava feito.

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Quem quiser entender essa história tenebrosa em detalhes deve ler Contra a Realidade – A Negação da Ciência, Suas Causas e Consequências (Papirus), escrito por Natalia Pasternak e o jornalista científico Carlos Orsi, que tem um capítulo a respeito. Eis um trecho:

“Nos anos passados entre a publicação do artigo e sua retratação, diversos pais e mães encontraram naquela vacina uma ‘explicação’ para o seu sofrimento e o de seus filhos. Uma resposta para a pergunta: ‘por que isso aconteceu comigo?’ Celebridades como os atores Jim Carrey e Jenny McCarthy abraçaram a teoria de Wakefield e se transformaram em grandes defensores da causa antivacinação. As taxas de vacinação começaram a cair no mundo todo e surtos de sarampo se tornaram frequentes (…)”

O desserviço do ex-médico transformou-se em teoria da conspiração, abraçada por pais e mães aflitos, mas também por personalidades e políticos. Um deles é hoje o secretário de saúde dos EUA. Alguém que, tudo leva a crer, mobilizará uma caça às bruxas a um dos maiores bens da medicina, as vacinas.

Apelo à vacinação

Tendo diagnóstico de autismo e um filho autista, Lacerda, que atua nas redes sociais para desmistificar a condição, ressalta a urgência de não se dar ouvidos à pseudociência que circula pela internet. “A vacinação é importante inclusive para pessoas em alguma situação de vulnerabilidade, e as crianças autistas estão nessa categoria. Portanto, temos uma responsabilidade ainda maior em efetivar a vacinação nesse contexto”, afirma.

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“Precisamos de um alto número de pessoas vacinadas para que a imunização, enquanto fenômeno social, funcione”, enfatiza o psicólogo. Calcula-se que 83% das crianças pelo mundo tenham tomado a primeira dose da vacina contra o sarampo e somente 74% a segunda dose. A meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) é 95%. Sim, continuamos aquém…

Como se sabe, vírus não respeitam fronteiras geográficas. Então a ameaça e as precauções se estendem aos brasileiros.

Eis o desafio no horizonte. Se desacreditarmos as vacinas, a história também pode se repetir como tragédia.

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