Como o Brasil criou uma confusão inaceitável em torno da vacinação
Por disputas políticas e falta de planejamento, país virou sinônimo de bagunça no combate à Covid-19
Enquanto no mundo o tão esperado antídoto contra a Covid-19 gerou uma onda de esperança e união — o bloco europeu, por exemplo, decidiu que iniciará a imunização nos 27 países no mesmo dia e de forma simultânea logo depois do Natal —, no Brasil o tema ainda é alvo de divisões políticas, ações judiciais, campanhas de desinformação e confusão entre as autoridades. Antes reconhecido internacionalmente por seu programa de vacinação em massa, o país agora virou sinônimo de bagunça, enquanto supera a triste marca de 183 000 mortos. Na mesma data em que a população dos Estados Unidos começou a ser imunizada, dia 14, o jornal The New York Times sintetizou a situação crítica numa reportagem com o título “Brincando com vidas: plano de vacinação brasileiro está atolado no caos”.
Depois de muita confusão e de ter recebido um ultimato do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, o Ministério da Saúde apresentou na última quarta, 16, o plano nacional de imunização. Ele não fixa uma data para o início do processo, fala apenas que deve começar cinco dias após a aprovação da Anvisa de qualquer um dos produtos atualmente em fase final de testes. O ministro Eduardo Pazuello citou fevereiro como o mês provável para o princípio da campanha (em declarações recentes, havia falado em março e, depois, em janeiro). Foram necessárias intensas discussões — e semanas — para que os governadores conseguissem arrancar dele que toda e qualquer vacina, independentemente de sua nacionalidade, será comprada, assim que for registrada na Anvisa. A frase precisou ser dita e redita por Pazuello pelo menos uma dezena de vezes, sobretudo depois que Jair Bolsonaro declarou no início da polêmica que “não compraria a vacina chinesa”. Pois o plano nacional de imunização finalmente incluiu a CoronaVac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, do estado de São Paulo, que promete apresentar a taxa de eficácia do produto no próximo dia 23 (a promessa inicial era de que essa informação seria revelada na terça passada, 15).
Doses de incompetência e o vírus da política atrapalharam (e continuam atrapalhando) uma discussão que deveria ser técnica. Acima de todos, Bolsonaro contribuiu decisivamente para a confusão, fazendo ressalvas e criando todo tipo de dificuldades a uma campanha de vacinação, o que pode ter impactado o interesse dos brasileiros em se imunizar — levantamento exclusivo do instituto Paraná Pesquisas indica que um terço dos entrevistados diz que não tomará a CoronaVac. “As pesquisas mostram que, infelizmente, as pessoas veem a vacina como um feito do Doria ou do Bolsonaro, e não como um instrumento de saúde pública”, diz Murilo Hidalgo, diretor do Paraná Pesquisas. O levantamento mostra ainda um país praticamente dividido quanto à obrigatoriedade da vacinação (Bolsonaro faz pregação contra isso) e que a maioria considera lenta as ações do governo federal para iniciar a imunização (61,4%).
Preocupados com a falta de urgência do Palácio do Planalto e do titular da pasta da Saúde (“para que essa ansiedade, essa angústia?”, disse Pazuello ao ser perguntado sobre prazos para o início do programa), onze dos 27 chefes de Executivo dos estados já procuraram o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), adversário político do presidente, para comprar diretamente a CoronaVac caso o plano federal naufrague. Um deles foi Flávio Dino, que, apesar de ser do PCdoB, tornou-se um dos maiores aliados do tucano paulista e acertou uma remessa de 200 000 doses ao Maranhão. “Nós vivemos hoje no reino da imprevisibilidade. Tudo pode acontecer, inclusive nada, que é o que está ocorrendo”, sintetiza. O interesse pela CoronaVac não é exclusivo da oposição. O governador do Acre, Gladson Cameli (PP), amigo do presidente, foi a São Paulo negociar pelo menos 100 000 doses com o Butantan.
Numa atitude diametralmente oposta, Doria decidiu marcar o início da vacinação em São Paulo para 25 de janeiro, antes de ter a comprovação da eficácia ou registro, o que provocou a ira de alguns governadores. Na última semana, o grupo de WhatsApp deles pegou fogo quando Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, manifestou indignação com Doria, dizendo que ele punha em xeque a credibilidade dos colegas. Também manifestaram desconforto dirigentes de estados vizinhos a São Paulo, que temem um deslocamento em massa da sua população. “Alguns atores políticos querem uma evidência maior, mas vacina é que nem papel-moeda. Não pode ser diferente de um estado para outro”, diz o mineiro Romeu Zema (Novo).
Apesar das divergências, há um consenso entre os governadores sobre a necessidade de Bolsonaro se engajar mais e mostrar claramente que apoia o plano. Esse ponto foi alcançado em parte na quarta 16, quando o presidente — finalmente — falou em “momento de paz e entendimento” para chegar a uma “solução” e terminou com abraços no boneco Zé Gotinha. Já é uma demonstração positiva, considerando-se que, dois dias antes, o Ministério da Saúde havia transmitido uma missa de Natal em seus canais oficiais antes de lançar o plano nacional de imunização.
Outro avanço foi a retomada do diálogo entre o Ministério da Saúde e o Butantan. O instituto enviou um pré-acordo de aquisição de um total de 46 milhões de doses da CoronaVac para o Brasil inteiro. Pela compra, o Butantan se comprometeria a deixar de lado o plano estadual de Doria e anularia os memorandos de entendimento firmados com estados e municípios. Mas ainda falta o aval do presidente, que demonstra diariamente não ser entusiasta da vacina e fez questão de declarar que não vai tomar nenhuma delas (“o problema é meu e ponto-final”).
Se algumas respostas importantes ainda ficaram pendentes — como a definição de compra das vacinas da Pfizer e da CoronaVac —, a pressão sobre o governo federal e governadores tende a aumentar à medida que novos países entram na lista de imunização contra a Covid-19. Na última segunda, 14, Estados Unidos e Canadá se juntaram ao Reino Unido, Rússia, China e Emirados Árabes, enquanto União Europeia, México, Turquia e a vizinha Argentina anunciaram que começarão a vacinar a sua população antes de terminar 2020. Estamos bem atrasados em relação aos outros países, mas ainda há tempo de o Brasil voltar a ser exemplo mundial na vacinação em massa e não ficar nas últimas posições da corrida pela vida.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718