Descoberta de medicina traz mudança profunda no tratamento do diabetes
Assim como o câncer, um dos principais pesadelos da saúde pública é muito mais complexo do que se imaginava
Desde que os primeiros dados do Projeto Genoma começaram a ser liberados, em abril de 2003, ficou claro que dali por diante a medicina nunca mais seria a mesma. Com 99% do material genético humano decifrado, iniciou-se uma fabulosa transformação na forma de compreender e tratar as doenças baseada na evidência de que elas, ao final, não eram exatamente como se imaginava. De acordo com características genéticas distintas, uma enfermidade pode ter manifestações, evoluções e desfechos muito diferentes.
O conhecimento vem imprimindo mudanças históricas, particularmente expressivas no enfrentamento do câncer. Já virou um mantra entre os oncologistas a postulação de que o câncer não é uma doença, mas várias. Assim, o que antes era combatido com uma receita hoje é atacado com enorme variedade de armas. Chama-se essa abordagem de medicina de precisão, caminho sem volta no cuidado à saúde. Agora, ela chega ao controle do diabetes, doença que atinge 537 milhões de pessoas no mundo, 16 milhões no Brasil. Assim como no câncer, as terapias contra a moléstia mudarão para sempre.
O diabetes é um dos principais pesadelos de saúde pública do planeta por representar importante fator de risco para infarto cardíaco e acidente vascular cerebral e ser a maior causa de cegueira em pessoas de 20 a 60 anos. A doença é caracterizada quando a concentração de açúcar no sangue ultrapassa os índices recomendados. Isso acontece sempre que algum problema impede a produção ou o funcionamento adequado da insulina, hormônio secretado pelo pâncreas que tem a função de abrir a porta das células para a entrada da glicose, o combustível que as faz funcionar. Sem conseguir entrar, o açúcar circula pelo corpo, causando estragos.
Convencionalmente, conhecia-se dois tipos da enfermidade. O 1 seria apenas congênito e de origem autoimune, quando as células do sistema de defesa do corpo atacam estruturas do próprio organismo. Nesse caso, o alvo são as células pancreáticas produtoras de insulina. O tipo 2 teria origem somente em questões ligadas ao estilo de vida, como obesidade e sedentarismo. O que se descobriu, no entanto, é que o gênero 2 é muito mais complexo, inclusive com casos nos quais também está presente o componente autoimune. É o que os médicos estão chamando de diabetes tipo 1,5. Por causa disso, está sendo adotada uma nova classificação agrupando os pacientes de acordo com os perfis predominantes na apresentação da doença. Foram criados cinco subgrupos: obesidade, resistência à insulina (o corpo produz, mas o hormônio não cumpre sua função adequadamente), disfunção de insulina (produção insuficiente), traço autoimune e carga genética que favorece o surgimento precoce de complicações típicas da doença, como prejuízos renais e oculares.
Esse entendimento altera a forma de controlar a enfermidade, que deixa de ser baseada em atributos gerais para se tornar focada no que realmente está por trás das altas taxas de açúcar na circulação sanguínea. “O caminho é fornecer tratamentos pensando em qual subgrupo o paciente se encaixa”, diz Ricardo Cohen, coordenador médico do Centro de Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Cohen integra o grupo internacional de autores de um estudo recém-divulgado cujas conclusões convergem para a nova visão, a da variedade de diabetes. A pesquisa foi conduzida por cientistas franceses, brasileiros, americanos e suecos, e analisou, de modo retrospectivo, qual havia sido a resposta de pacientes com severa resistência à insulina e predisposição a graves problemas renais às cirurgias feitas no Brasil e na França entre os anos de 2006 e 2017. O procedimento reduz o volume do estômago, provocando mudanças no metabolismo que, espera-se, levem ao controle dos índices de açúcar na corrente sanguínea. Pode ser realizado em indivíduos que não conseguiram ter o diabetes controlado por meio de remédios e mudança de hábitos e apresentam comorbidades (obesidade, entre elas).
A hipótese levantada pelos pesquisadores era ver se aquele grupo específico de pacientes poderia particularmente ter se beneficiado com a operação. Eles queriam passar um pente-fino e refinar as indicações para a cirurgia de acordo com as novas categorizações para a enfermidade. Concluíram que o subgrupo de diabéticos estudado está associado aos melhores resultados da operação tanto no que diz respeito à remissão da doença quanto à manutenção das funções renais. “É o primeiro estudo que mostra a customização da cirurgia para pacientes com diabetes tipo 2”, diz Ricardo Cohen. “Mostramos quem vai se beneficiar mais e os médicos poderão definir acertadamente os pacientes”, completa.
A pesquisa foi publicada no início do mês na revista científica The Lancet Diabetes & Endocrinology, integrante da The Lancet, um dos mais respeitados periódicos científicos do planeta. Na apresentação do artigo, os cientistas escreveram que o trabalho representa um passo na direção da medicina de precisão no tratamento do diabetes por meio da cirurgia. Algo necessário e urgente. “Assim como não se pode pensar em operação para pacientes com o tipo 1, não tem cabimento oferecê-la ao tipo 2 com componente autoimune, por exemplo”, afirma o médico Domingos Malerbi, presidente do Departamento de Diabetes da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. O princípio básico para o sucesso de qualquer tratamento é acertar o diagnóstico. Depois, ajustar o remédio e a dose. Por décadas, ele não foi obedecido, prevalecendo entre os médicos a conduta de acompanhar os indivíduos com diabetes tipo 2 como se todos tivessem a mesma doença. E, como demonstram as pesquisas, não têm. Um erro, mas causado por falta do conhecimento e que finalmente começa a ser corrigido. Eis a beleza da ciência.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778