Covid, cinco anos. Os protagonistas da crise: ‘Estamos livres da pandemia, não de endemias’
À frente do Instituto Butantan durante emergência, hematologista Dimas Covas relata a luta pela vacina em quarto episódio de série de VEJA

O dia 8 de dezembro de 2020 ficou marcado na história como a data em que a primeira pessoa foi vacinada contra a covid-19 no mundo. A imagem de uma mulher de 90 anos recebendo a dose em um hospital na Inglaterra dava esperanças de controlar a doença que lotava unidades de saúde e matava milhares por dia.
No Brasil, era travada uma batalha entre a ciência e o negacionismo, inclusive por parte de quem governava o país, o então presidente Jair Bolsonaro, e com as sucessivas mudanças no Ministério da Saúde, falta de transparência sobre os casos e negativas para compra de vacinas enquanto outros países estavam em uma corrida para garantir as doses dos imunizantes desenvolvidos e testados em tempo recorde.
Em São Paulo, uma parceria entre o Instituto Butantan e a biofarmacêutica chinesa Sinovac levaria à primeira vacina aplicada no país em janeiro de 2021, a CoronaVac, que salvou vidas em um momento crítico, mas não ficou livre de ataques infundados e preconceituosos.
Desde 11 de março, dia em que a declaração de pandemia para covid pela Organização Mundial da Saúde (OMS) completou cinco anos, VEJA publica a série “Covid, cinco anos. Os protagonistas da crise”, que conta os bastidores da emergência sanitária e traz as lembranças de quem sobreviveu ao vírus, trabalhou salvando vidas e lutou pela vacina.
No primeiro episódio, tivemos o relato da cirurgiã coloproctologista Angelita Habr-Gama, de 92 anos, que passou 52 dias internada na UTI e venceu o vírus. O segundo abordou as chegadas e partidas testemunhadas pelo pneumologista Artur Codeço, diretor médico de Cuidado Integrado Acessível do Einstein que atuou como referência técnica no hospital de campanha erguido no Estádio do Pacaembu, na cidade de São Paulo. O terceiro episódio teve o relato do infectologista Esper Kallás, atual diretor do Instituto Butantan que, no auge da pandemia, integrou o Centro de Contingência para o coronavírus do estado de São Paulo.
Neste quarto episódio, o hematologista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Dimas Covas fala sobre a alegria da possibilidade de proteger a população brasileira contra o vírus, quando esteve à frente do Butantan, e a decepção com o tratamento pejorativo dispensado por grupos anticiência. Ele chorou ao se lembrar da vacinação da mãe e criticou a decisão dos Estados Unidos e da Argentina de se desligar da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Quando foi declarado o estado pandêmico pela Organização Mundial da Saúde houve um alívio geral, porque foi dado um reforço para agir e adotar as medidas que deveriam ser tomadas. Todo mundo já sabia da gravidade pelas notícias da China e da Itália, víamos a construção de hospitais em dez, 15 dias, pessoas precisando de leitos, falta de infraestrutura e respiradores. Era um cenário que a gente previa para o Brasil. Só não sabíamos quanto tempo ia demorar a acontecer.
Ao ser detectado o primeiro caso, em fevereiro, as pessoas ficaram surpresas, mas já tínhamos mapeado a alta possibilidade de disseminação do vírus e uma das funções e prioridades do Instituto Butantan era localizar vacinas entre os nossos parceiros. Era um trabalho de prospecção. Vários parceiros foram contactados, porém, não se sabia quando tempo demoraria para termos uma vacina, porque isso demora cinco, seis, sete anos.
Entre os parceiros, tinha a Sinovac. Tínhamos acabado de ter um intercâmbio na China e eles tinham uma vacina já pronta. Houve um casamento interessante, porque poderíamos testar clinicamente aqui e incorporar rapidamente essa tecnologia, do vírus inativado, que o Butantan domina.
Foi uma vacina rapidamente produzida e o primeiro momento foi de entusiasmo geral. Fizemos o primeiro acordo, o contrato foi assinado em maio e, em junho, começamos o estudo clínico que foi feito em vários centros espalhados pelo país. A população alvo foi daqueles que estavam diretamente ligados à pandemia: os profissionais de saúde. Tivemos a adesão necessária para acontecer da forma mais rápida possível.
Daí, apareceram empecilhos. Tivemos a negativa do governo em sinalizar a compra da vacina. Fizemos a primeira oferta de 100 milhões de doses e não tivemos resposta. Repetimos em agosto, setembro e tivemos a resposta inicial em outubro, mas com a intenção de comprar apenas 46 milhões de doses. No alvorecer do dia seguinte, o então presidente negou, disse que jamais compraria a vacina da China. Foi um balde de água fria.
Batizaram o imunizante de forma pejorativa como “vachina” em um intuito claro de diminuir a iniciativa, como se fosse política e não de saúde pública. Insistimos e, em novembro, tínhamos 6 milhões de doses já prontas. A vacina foi finalmente autorizada em 17 de janeiro de 2021.
Foi uma luta sofrida, porque perdíamos pacientes e funcionários com doses da vacina armazenadas. Foi muito doloroso se conformar com isso. Tive muito medo, muita insegurança e também muita revolta de perceber que, no século 21, diante de uma ameaça tão calamitosa, as pessoas duvidavam de uma possível salvação e da única saída, que são as vacinas.
Como pessoa, além de cientista e professor, você se vê diante da fragilidade da espécie humana e, muitas vezes, o aspecto irracional prevalece em momentos tão críticos. A pandemia deixou lições, mas, do ponto de vista pessoal, ficou uma certa descrença em relação a parte da humanidade.
Por outro lado, foi extremamente gratificante saber que a gente conseguiu fazer algo que ajudou milhares de pessoas. Acredito que o time do Butantan foi um balizador para o futuro, porque as pessoas puderam sentir o imenso potencial da ciência. Foi testado na prática algo que só víamos nos livros.
É indescritível quando vê o seu esforço ser aplicado. A outra emoção foi quando entrou a vacinação dos idosos. (Covas faz uma pausa e chora) Desculpa, fico emocionado, fui para casa, em Batatais, e fui vacinar minha mãe que, na época, estava com 89 anos. Ela faleceu no ano passado.
As pessoas falavam que essa vacina tem eficácia menor do que as outras, mas houve uma dificuldade de compreensão muito grande naquele momento sobre a relevância de ter um imunizante para evitar óbitos pelo vírus. Antes de qualquer vacina ser aprovada, falava-se que, no nível de mortes contabilizadas quando não havia uma proteção, se a gente tivesse uma vacina com eficácia de 20 a 30%, já salvaria vidas. E, no Brasil, poderíamos ter começado a vacinação em novembro ou no início de dezembro e muitas pessoas teriam sido salvas.
São lições que vão sendo aprendidas, mas temos de continuar a luta despertada pela pandemia, não rasgar as páginas da história e reler com frequência para que elas não sejam esquecidas. Quando começou a pandemia, procurei um livro antigo sobre a gripe espanhola, ‘A Grande Gripe‘, e todas as lições estavam lá: uso de máscara, isolamento social, medidas de higiene.
A gente tem de olhar para isso. Estamos livres da pandemia, mas não das endemias. Continua morrendo gente no Brasil por covid e o mundo só está melhor preparado para outra pandemia, não completamente preparado. Precisamos investir e analisar certos comportamentos atuais, como a saída de países do financiamento da OMS, que foi tão fundamental para a pandemia, principalmente para os países mais pobres.
Qual o sentido de desmontar sistemas de saúde e reverter a necessidade de vacinação? Isso não é uma escolha pessoal, é uma necessidade coletiva para proteger a sociedade. A ciência está sendo questionada, mas precisamos reagir.