Apesar dos obstáculos, Brasil já é um dos países que mais vacinam no mundo
O início da imunização contra a Covid-19 teve de superar diversos percalços, mas a campanha avança pelo país, com resultados promissores
Mal posicionado em razão principalmente do comportamento errático de seus gestores públicos — tomados ora pela incompetência, ora pela cegueira ideológica —, o Brasil largou com atraso na importantíssima corrida pela imunização da população contra a Covid-19. Mas desde que começou, em 17 de janeiro, pelo braço da enfermeira Mônica Calazans, em São Paulo, dá mostras de que é possível vislumbrar um horizonte positivo para a contenção da pandemia, que já matou mais de 227 000 brasileiros, e consequentemente para a recuperação econômica — hoje, as duas prioridades absolutas do país.
Em uma nação com 212 milhões de habitantes, o ritmo e o volume de gente imunizada contam muito. E já somos o quinto país que mais vacina pessoas por dia em números absolutos (veja o quadro) à frente de Alemanha, França e Itália, que deram a largada em dezembro. Se for levada em conta a proporção em relação à população, o Brasil, com 1%, está muito atrás de países como Israel (57%) e Reino Unido (15%), mas já ultrapassou a Argentina (0,9%) e o México (0,5%), que iniciaram as suas campanhas no fim do ano passado.
Chegar até aqui, porém, não foi fácil porque percalços variados surgiram no caminho. O principal foi a baixa quantidade de doses disponíveis na largada (12,8 milhões), o que obrigou o governo a filtrar ainda mais as prioridades. Mas a combinação de fiscalização frouxa com a esperteza de alguns criou algo ainda pior: uma lamentável legião de fura-filas pelo país. O caso mais grave ocorreu em Manaus. Em meio ao caos no sistema de saúde local, o Ministério Público pediu a prisão e o afastamento do prefeito David Almeida (Avante) e da secretária estadual de Saúde, Shadia Fraxe, suspeitos de contratar pessoas ligadas a empresários e políticos para receber a vacina antes de quem atua na linha de frente. A gritaria começou quando as gêmeas Gabrielle e Isabelle Kirk Lins, médicas recém-formadas e admitidas na semana do início da vacinação como “gerentes de projeto”, postaram fotos sendo vacinadas. A Justiça obrigou estado e município a suspender a campanha e a fornecer a relação de imunizados para averiguação. “Recebemos uma lista com CPFs que não batem, duplicidade de nomes e pessoas que não foram vacinadas nos locais indicados”, diz o promotor Armando Gurgel Maia. Segundo ele, a relação traz filhos e pais de deputados e vereadores e mais de 800 vacinados marcados com a ocupação “outros”, ou seja, que não se encaixariam entre os prioritários.
Em outros estados, o mau exemplo veio de cima. Em Serra do Navio (AP), o secretário de Saúde, Randolpho Scooth, que não é médico, recebeu uma das 89 doses enviadas ao município. O caso revela a face bastante nociva de um gestor público. No fim de 2020, ele havia feito postagens criticando a CoronaVac, justamente o imunizante que tomou. “Nós não somos cobaias”, escreveu à época. Agora furou a fila para se imunizar antes de pessoas que teriam mais direito que ele. Em Pires do Rio (GO), o então secretário de Saúde, Assis Silva Filho, conseguiu uma dose para ele e outra para a esposa. Depois, gravou um vídeo pedindo desculpas e foi afastado do cargo pela Justiça. “Foi com o intuito apenas de preservar a saúde da mulher da minha vida”, disse o “apaixonado”.
Como se trata de uma operação com monumental logística e alto valor, as prioridades nas regras de vacinação sofrem diversas tentativas de burla. Em algumas localidades, a esperteza ganhou ares de esquema criminoso. No Rio de Janeiro, a Polícia Civil investiga coação e suborno por políticos para conseguir o imunizante antes de grupos prioritários. Em Belo Horizonte e Diadema (SP), inquéritos apuram o furto de doses em hospitais. Mais de trinta investigações foram abertas em treze estados para apurar crimes relacionados à vacina. “Trabalhamos para que não haja obstáculos que atrasem o avanço da vacinação”, diz a VEJA a subprocuradora-geral Célia Delgado, coordenadora do gabinete de acompanhamento da pandemia na Procuradoria-Geral da República.
Embora exista alguma balbúrdia no varejo, o país tem o que comemorar. Depois de diversas cabeçadas, os governantes parecem empenhados em resolver o problema. Na quarta-feira 3, chegaram insumos da China para o Butantan produzir 8,6 milhões de doses da CoronaVac. No mesmo dia, a Anvisa retirou a exigência de testes da fase 3 no Brasil, o que abriu caminho para a aprovação do imunizante russo Sputnik V e para o governo comprar até 150 milhões de unidades que serão feitas aqui. Cabe ao país evitar que prospere a máxima do personagem Macunaíma, o herói sem caráter, da obra homônima de Mário de Andrade: “Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são”. Enquanto a ciência viabilizou imunizantes em tempo recorde, e os órgãos de investigação apertam o cerco às formigas, os gestores públicos devem manter o foco: acelerar a vacinação para pavimentar a estrada que nos conduzirá ao fim do pesadelo.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724