Afinal, qual o verdadeiro problema da homeopatia?
A ideia da 'memória da água' foi criada para tentar explicar como, sem nenhum princípio ativo, o medicamento poderia ter algum tipo de ação biológica

No fim do século 18, a medicina ainda não sabia que microrganismos causavam doenças, e noções básicas de higiene estavam longe de ser amplamente reconhecidas. Procedimentos médicos corriqueiros envolviam sangrias e a ingestão de metais pesados, como o mercúrio. Esses tratamentos, além de não promover a recuperação dos pacientes, frequentemente causavam complicações graves e, em muitos casos, levavam à morte.
É nesse contexto que Samuel Hahnemann cria a homeopatia. Baseada em preparados ultradiluídos – que não contêm sequer uma única molécula do princípio ativo e que, portanto, não têm nenhum efeito específico – e na ideia de miasmas (uma espécie de fluido etéreo que prejudicaria a energia vital das pessoas) como causadores de doenças crônicas, essa prática pouco mudou ao longo de mais de 200 anos, mantendo-se fiel a conceitos que não encontram respaldo na ciência moderna.
No entanto, apesar das bases místico-esotéricas e da incompatibilidade com os princípios da física, da química e da biologia, a homeopatia sobrevive até os dias de hoje. Atualmente, é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), faz parte do SUS e ainda é ensinada em algumas das melhores faculdades de medicina do país.
É a partir da implausibilidade teórica e clínica da homeopatia que se inicia a análise sociológica do livro “Cultura homeopática – uma investigação sobre a comunicação do desconhecimento”, de Lenin Bicudo Bárbara, publicado pela Editora Unesp. Bárbara aborda a homeopatia como objeto de estudo da agnotologia, termo cunhado pelo historiador da ciência Robert Proctor, professor de Stanford, para se referir ao estudo da produção cultural da ignorância.
O livro é bem escrito e, apesar de denso, a leitura flui muito bem. O autor avisa logo de início que não pretende analisar a homeopatia do ponto de vista físico-químico, mas entender, sob uma perspectiva sociológica, por que uma prática já questionável para os padrões da época pôde sobreviver por tanto tempo. Bárbara escreve: “À medida que Hahnemann desenvolveu o corpo teórico da homeopatia, ela se mostrou cada vez mais inviável quando comparada às teorias concorrentes, de modo que, em 1833, já se podia dizer que não havia mais boas razões para aceitar as suas principais ideias, inclusive aquelas que, duas décadas antes, soavam mais promissoras”.
A homeopatia, formada pelas palavras gregas homeo (semelhante) e pathos (sofrimento) é baseada em três ideias principais: duas que podem ser consideradas clássicas (já que remontam ao trabalho de Hahnemann) e uma mais moderna. A primeira das clássicas é que “semelhante cura semelhante”. De acordo com essa crença, substâncias que causam sintomas parecidos com os da enfermidade a ser combatida poderiam ser usadas para curá-la – ou seja, cafeína e cebola poderiam curar, respectivamente, insônia e gripe, já que café acorda pessoas e os compostos voláteis da cebola deixam os olhos lacrimejantes e o nariz escorrendo. Mas não é qualquer quantidade de cafeína ou cebola, e sim soluções tão diluídas a ponto de não restar absolutamente nenhuma molécula ativa do soluto na solução final. Esse princípio – o da diluição infinitesimal – é a segunda ideia “clássica” de Hahnemann.
A ideia moderna, a da “memória da água”, foi criada para tentar explicar como, sem nenhum princípio ativo na solução homeopática, o medicamento poderia ter algum tipo de ação biológica. Inventou-se, portanto, que a água preservaria uma memória do composto que foi agitado com ela. Para que essa “memória” seja ativada, a mistura deve ser agitada vigorosamente, processo conhecido como sucussão. A técnica de sucussão surgiu com Hahnemann, mas ele não falava em “memória”, e sim em forças espirituais.
A hipótese de Hahnemann sobre as doenças, ignorando as causas e baseando-se apenas nos sintomas, partia da visão de que, embora os sintomas estivessem relacionados a causas internas, estas eram incognoscíveis. Nas palavras de Hahnemann, escritas em 1810 e traduzidas por Bárbara diretamente do alemão, lê-se: “É de se imaginar que toda doença tenha de se basear numa alteração ocorrida no interior do organismo humano. Essa alteração, não obstante, só pode ser intuída pelo entendimento a partir dos sinais externos que a revelam; ela não pode, de maneira nenhuma, ser reconhecida em si mesma”. A hipótese da inacessibilidade das alterações internas cairia por terra apenas seis anos depois com a invenção do estetoscópio, em 1816.
Trazendo a discussão para os dias atuais, Bárbara mostra que as ideias equivocadas de Hahnemann ainda são reproduzidas entre homeopatas. No 70° Congresso da Liga Medicorum Homoeopathica Internationalis, 15 das 65 apresentações (21,5%) fizeram referência à teoria miasmática, afirmando que a identificação do miasma serviu como base para a seleção do medicamento prescrito a um paciente real. Uma questão de 2012 no processo seletivo para médico homeopata da prefeitura de Cubatão (SP) indicava como resposta a administração do “medicamento” Aurum metallicum (ouro metálico) para uma série de sintomas do paciente.
A segunda parte do livro trata da história da chegada e assimilação da homeopatia no Brasil. Embora não seja uma obra eminentemente histórica, o autor é detalhista e adota uma separação em seis períodos que vão de 1840 até os dias atuais. Bárbara aborda questões sociais, como insuficiência estrutural do atendimento à saúde, além da ação coordenada dos homeopatas para fazer proselitismo da doutrina e explorar brechas institucionais. As afinidades da homeopatia com os costumes e crenças de boa parte da população – incluindo manobras políticas e uma aliança religiosa com a Federação Espírita Brasileira – também são citadas como fatores relevantes para a inserção da prática homeopática no país.
Também estão presentes análises de como homeopatas costumam se apropriar erroneamente de conceitos de luminares das ciências sociais, como Michel Foucault e Pierre Bourdieu, para se esquivarem dos crivos da ciência por meio da criação de uma “corrente culturalista” da homeopatia. Cunhada por Bárbara, esta corrente é caracterizada por essa instrumentalização dos referenciais teóricos das humanidades para estabelecer uma ideia da construção social da realidade e “tentar rebater, de maneira indireta, a objeção costumeira de que os preparados homeopáticos são inertes”.
Apesar de todo o rigor adotado pelo autor, alguns trechos do livro não deixam de ser pitorescos, como, por exemplo, relatos extraídos de revistas ou de falas públicas em congressos de homeopatia. Nessas passagens, o autor descreve depoimentos de pacientes que trataram depressão com pepino ultradiluído e de homeopatas que prescrevem substâncias para tratar “predisposição ao crime, abandono da família ou o comprometimento das capacidades de interação de crianças neuroatípicas”. Enfim, o livro é bastante interessante. Além de traçar uma história epistêmica da homeopatia – mostrando como, e em que momento, ela se desviou do caminho da verdadeira medicina –, a obra representa um feito raro, uma história do desenvolvimento da prática no Brasil que escapa à censura hagiográfica e triunfalista dos homeopatas. É uma leitura que vale a pena.
*Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
**Possível conflito de interesse: o livro “Cultura homeopática – uma investigação sobre a comunicação do desconhecimento”, de Lenin Bicudo Bárbara, foi publicado pela Editora Unesp. O autor da resenha é professor dessa universidade, e tanto ele quanto o editor-chefe desta revista são citados nos agradecimentos do autor do livro.)