A pandemia impede despedida tradicional aos mortos pela Covid-19
Luto pela metade: o cenário extingue ritos, impede gestos que reconfortam e faz da última despedida uma travessia ainda mais dolorosa
Isolado em um leito de UTI, cuidado por gente de quem não vê o rosto, o paciente contaminado pelo novo coronavírus dá seu último suspiro longe de todas as pessoas que ama e conhece. O corpo envolvido em plástico, ainda vestido com a bata hospitalar, vai para o necrotério e de lá, em caixão lacrado, segue para o cemitério. Um ou outro parente próximo acompanha o enterro de longe. Não há despedida, não há ritual, não há velório. Presa em casa, afastada do ambiente de trabalho que poderia preencher seus pensamentos, impedida de se distrair na academia, no cinema, em uma viagem, a família mergulha em um luto que a sensação de irrealidade torna ainda mais doído. A pandemia que esmaga o planeta e corta o convívio pessoal tem provocado enormes transformações no mundo tal qual o conhecíamos, e esta é uma das mais pungentes: a perda de pessoas queridas, sempre dilacerante, ter de ser absorvida sem os ritos que confortam e ajudam a atravessar os momentos que se seguem à morte. “A distância amplifica o pesar. Os enlutados acabam lidando com a situação da pior forma, envoltos em uma terrível sensação de impotência”, diz Juliana Batista, psicóloga da UTI do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, e especialista em luto e cuidados paliativos.
O Brasil, com mais de 900 mortos até a quinta-feira 9, já enfrenta o drama dos enterros solitários, embora ainda esteja distante dos horrores de outros países mais afetados, onde corpos permanecem insepultos e crematórios não dão conta do serviço. Aqui, as famílias inconformadas tentam furar o bloqueio, apesar dos riscos, e às vezes conseguem. Dez parentes de Francisco Raimundo de França, de 67 anos, cujo diagnóstico da Covid-19 chegou no exato momento do funeral, entraram em uma das tendas verdes montadas para abrigar vítimas do novo coronavírus ao lado da capela no Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina, rezaram um pai-nosso, se abraçaram e tocaram o caixão lacrado. “Orientamos todos a ficar do lado de fora e manter distância uns dos outros. Mas é um trabalho angustiante”, desabafa o secretário de Subprefeituras de São Paulo, Alexandre Modonezi.
A cidade de São Paulo concentra o maior número de casos e mortes da Covid-19 no Brasil, e os próprios cemitérios estão optando pelo enterro imediato, sem velório, executado por coveiros de máscara, luvas e macacão protetor. Os rituais de extrema-unção e encomenda do corpo deixaram de ser praticados, com a bênção da Arquidiocese de São Paulo. “Acreditamos na ressurreição das pessoas que estão com Deus, portanto a morte física não é definitiva. Passado este período difícil, as famílias poderão celebrar a memória dos que partiram”, justifica o padre Eliomar Ribeiro, pároco da Igreja de São Luís Gonzaga e diretor do Apostolado da Oração.
Sem religiosos presentes, coube a Ueliton Neri Reis, que se prepara para se tornar pastor da Assembleia de Deus, ler um trecho do Evangelho enquanto a urna com o corpo de seu irmão Givaldo, morto aos 46 anos, permanecia no carro do serviço funerário estacionado ao lado da capela do Cemitério de Vila Formosa. Seis familiares, um deles encarregado de filmar a cena no celular e enviá-la à mãe, presenciaram a cerimônia breve e improvisada. A jornalista Mafalda Moura precisou alugar às pressas um jazigo em um cemitério de Santo André, no ABC paulista, para sepultar o irmão Idalgo, enfermeiro que contraiu o vírus. “Meu outro irmão transmitiu o enterro para a família pelo Facebook. Uma vida toda dedicada à enfermagem, a ajudar doentes, e a despedida durou sete minutos. Será difícil superar”, lamenta Mafalda. No Cemitério São João Batista, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, apenas quatro parentes, todos de máscara, assistiram de longe ao funeral de Alexandrina Torres, de 92 anos. “A última vez que vi minha mãe foi dez dias antes de ela morrer”, suspirava o filho Paulo, que tem 72 anos e se encontra em quarentena.
A importância do processo de despedida está presente no ensaio Luto e Melancolia, em que Sigmund Freud aponta as diferenças de dois sentimentos parecidos — melancolia, diz ele, é o luto não elaborado. A escolha da roupa para o sepultamento, a lavagem do corpo, o terço entre as mãos, a flor trazida de casa, as últimas palavras e gestos são passos que abrem caminho para a superação da perda. “A experiência plena da morte dá um novo significado à vida dos que ficam”, afirma a psiquiatra Alexandrina Meleiro, da Universidade de São Paulo. “Por causa da pandemia, o corpo não é exposto, e a família e os amigos não desencadeiam esse processo. Ao contrário, ele será descartado, como se fosse uma ameaça à vida.”
Rituais de conforto e acolhimento dos que ficaram são sumariamente interrompidos pela necessidade de isolamento e prevenção da doença, sacudindo tradições e aprofundando sofrimentos. No Oriente Médio, famílias muçulmanas se rebelam contra as regras impostas pela Covid-19, que impedem os parentes de lavar o corpo do morto, envolvê-lo em tecido e enterrá-lo pouco tempo depois do óbito — tudo em meio a uma profusão de parentes e amigos que acorrem para consolar quem está sofrendo. Para os judeus, marca fundo a impossibilidade de cumprir shiva, os sete dias seguintes à morte em que as pessoas próximas se recolhem em casa, recebem visitas e rezam o kadish, a oração dos enlutados que o vírus também dificultou — para entoá-la, exige-se a presença de ao menos dez judeus. Até os hindus, que cremam os mortos em fogueiras, eliminando o risco de contaminação, veem seu ritual dessacralizado pelo coronavírus: os cortejos para derramar as cinzas no Rio Ganges estão proibidos. “Os tempos do luto — o velório e os rituais de despedida, a lenta construção da compreensão da morte — se quebram e a ferida continua aberta”, diz Rosa Mariotti, doutora em psicologia do desenvolvimento.
Na Espanha devastada pelo novo coronavírus, onde as mortes chegaram a mais de 15 200, um padre identificado apenas como Edduar posta-se na entrada do Cemitério de La Almudena, em Madri, paramentado para missa, e, a cada carro funerário que chega, abre a porta, reza e asperge água benta sobre o caixão. O ato dura cinco minutos, tempo suficiente para que os acompanhantes (cinco no máximo) gravem e transmitam o gesto. “Eu vejo a dor no rosto das pessoas”, diz o padre. Na Itália, berço do catolicismo e o primeiro país europeu a proibir missas, velórios e, por fim, enterros nestes tempos escuros, causaram choque as filas de caminhões do Exército transportando caixões amontoados em igrejas por falta de espaço em cemitérios. No estado de Nova York, onde mais de 7 000 já foram vitimados pela Covid-19, veículos refrigerados guardam os corpos ainda não recolhidos próximo à saída dos hospitais lotados.
A dor se torna ainda mais pungente quando junto com a morte vem a ideia da indigência. No Equador, um dos países latino-americanos mais afetados, a precariedade do serviço funerário de Guayaquil, onde se concentra a maioria dos casos, fez com que moradores desesperados, em quarentena, colocassem corpos insepultos nas calçadas, depois de passarem dias dentro das casas, à espera do serviço funerário. “Ligamos muitas vezes para a emergência. Quando atendiam, diziam que vinham logo, mas nunca apareceram”, relatou Diana Cepeda, de 37 anos, que manteve por cinco dias o corpo do avô, Vicente Tinajero Guevara, de 90 anos, em um quarto com ar-condicionado e ventiladores ligados. Na segunda-feira 6, o governo começou a distribuir caixas de papelão para acomodar os mortos e organizou um serviço de recolhimento nas casas, ainda sem muito resultado. Cansada de esperar, Diana comprou ela mesma uma urna e providenciou o enterro por conta própria.
Epidemias provocadas por microrganismos, um inimigo que abate seres humanos desde o início dos tempos, são sempre a senha para mortandade em massa, disseminando uma espécie de luto planetário mesmo em quem não perdeu pessoas próximas. Foi assim com a gripe espanhola, que começou a se espalhar nos campos de batalha da I Guerra Mundial e se expandiu aceleradamente pelo mundo entre 1918 e 1920, matando mais de 50 milhões de pessoas. A história registra várias pestes desde que o homem passou a viver em comunidades, todas com força para dizimar pobres, ricos e poderosos como o imperador romano Lúcio Vero, vítima da peste antonina no ano 169. A peste negra, transmitida por ratos e pulgas no século XIV, reduziu a população europeia a um terço e voltou para assolar a Península Ibérica 300 anos depois.
A cada praga invisível, a população se une em solidariedade e em criatividade, dando novo significado aos recursos que possui. No Hospital Civil de Brescia, no norte da Itália — a porta de entrada no novo coronavírus na Europa —, a cirurgiã catarinense Mariana Dacoregio, de 32 anos, e seus colegas ofereceram celulares e tablets para que os doentes isolados conversassem com a família — e, muitas vezes, se despedissem dela. “Nada substitui um filho segurar a mão do pai ou da mãe. Mas aquela chamada de vídeo pode ser o último contato do doente com a família”, diz. A iniciativa se disseminou por toda parte, inclusive nos hospitais do Brasil. “Fazemos o que podemos, sempre com uma certa sensação de impotência. Levamos os sentimentos para casa e choramos sozinhos”, resume a cardiologista Regina Dalmau, que auxilia nos contatos virtuais de enfermos e parentes no Hospital de La Paz, em Madri. Ela conclui: “Este é o vírus da solidão”. E é mesmo — tanto na vida quanto na morte.
Colaboraram Amanda Péchy, Sofia Cerqueira e Vinícius Novelli
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682