A força dos tratamentos da Covid-19 que usam o próprio sistema imunológico
Procedimentos que atuam no sistema de defesa do organismo no combate ao novo coronavírus ganham força em estudos no mundo, inclusive no Brasil
No verão de 430 a.C., Atenas foi abalada por uma infecção misteriosa. Deflagrada na zona portuária, a enfermidade rapidamente se espalhou pela cidade inteira, matando um terço da população em apenas um ano. A origem da “praga de Atenas,” como a nomearam os pesquisadores, foi desvendada somente em janeiro de 2006, quando se confirmou a presença de bactérias da febre tifoide em dentes de ossadas. Em meio à pandemia, o historiador Tucídides descreveu um fenômeno: as pessoas que haviam contraído a peste e se recuperado não se contaminavam com a doença pela segunda vez.
Foi o pioneiro (e fascinante) relato do papel do sistema de imunidade do corpo humano. É como uma “dança barroca”, na definição da escritora americana Eula Biss, pela qual centenas de milhares de células atuam sob rígida, bela e intrincada hierarquia para manter o corpo blindado de infecções. Há aquelas que podem destruir células infectadas, as que engolem os microrganismos e depois exibem pedaços deles para que outras os reconheçam e reajam. Há as que monitoram sinais de doenças e outras, ainda mais sagazes, que produzem e transportam anticorpos.
Como não há ainda vacina contra a ação do Sars-CoV-2 e como a Covid-19 por enquanto não tem tratamento definitivo, um campo de trabalho cresce com extraordinária rapidez — a busca por técnicas de fortalecimento da própria engrenagem de defesas naturais do organismo. A mais bem-sucedida é a aplicação de plasma sanguíneo dos curados em acamados. Em decisão inédita no mundo, o respeitado serviço de saúde do Reino Unido (NHS) determinou que todos os pacientes com o novo coronavírus internados, mesmo os que não estão em UTIs, são elegíveis para receber a transfusão.
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Clique e AssineO princípio do recurso médico é simples: os anticorpos, os fiéis escudeiros contra invasores, que nadam no plasma de uma pessoa já imune, ao serem transferidos para outro organismo, passam a trabalhar avidamente. É o que se alcunhou de “imunização passiva”. Diz José Mauro Kutner, hematologista do Hospital Albert Einstein e coordenador da pesquisa de plasma em pacientes com Covid-19: “As pessoas recuperadas da Covid-19 têm altos níveis dessas proteínas de proteção, que permanecem no sangue mesmo depois do desaparecimento dos sintomas, afastando-as de futuras infecções”. O plasma compõe mais de metade do volume sanguíneo. Amarelado, ele é constituído majoritariamente por água. O restante inclui gorduras, fatores coagulantes, sais minerais e os preciosos anticorpos. É substância tão valiosa que hoje chega a representar 1,6% das exportações totais de produtos nos Estados Unidos, mais do que o país lucra com a venda de aviões.
Em todo o mundo, há dezenas de centros de investigação dos bons efeitos do plasma nos cuidados com a Covid -19, e muitos deles estão no Brasil. Os hospitais Albert Einstein, Sírio-Libanês, Beneficência Portuguesa e as universidades estaduais de São Paulo e do Rio de Janeiro lideram o movimento. “Não há dúvida das reais possibilidades desse tipo de tratamento contra a pandemia”, diz o hematologista André Larrubia, gerente executivo do banco de sangue da Beneficência Portuguesa. Um trabalho publicado no respeitadíssimo The American Journal of Pathology mostrou que 76% dos pacientes que receberam plasma apresentaram melhora. O maior estudo já realizado até o momento, feito por pesquisadores do Hospital Mount Sinai, em Nova York, comparou 39 pacientes graves com Covid-19 que receberam plasma com doentes que não foram submetidos a transfusões. Os resultados mostraram que os receptores de plasma saíram mais rapidamente do hospital e precisaram de menos oxigênio suplementar.
No fim de abril, a americana Cynthia Lemus, de 24 anos, foi uma das primeiras a ter alta nos Estados Unidos depois de ser tratada da Covid-19 com plasma no Intermountain Medical Center, em Utah, uma das maiores referências de saúde do planeta. O final feliz chegou treze dias após ela ter recebido a transfusão. A doação veio da Mayo Clinic, em Rochester, onde os médicos estão atuando como investigadores principais do protocolo nacional de tratamento do coronavírus com o plasma. As doações passam por rigorosa triagem, que inclui a análise da quantidade de anticorpos, além, claro, da tipologia sanguínea. “Muitas pessoas se voluntariam para doar, mas apenas 40% são selecionadas”, diz Silvano Wendel, diretor do banco de sangue do Hospital Sírio-Libanês. Infectada no início da pandemia, Gabriela Korek, de 34 anos, foi aprovada pelo Hospital Albert Einsten depois de longa e minuciosa investigação em torno de seu estado de saúde. “Queria não só fazer a minha parte para ajudar doentes graves, mas também agradecer a sorte que eu tive por ter me curado”, diz Gabriela.
É estrada luminosa, de curvas sinuosas, mas que aponta para um extraordinário caminho de esperança. Os cientistas já conseguiram desenvolver em laboratório anticorpos semelhantes aos do plasma humano. No início deste mês, a farmacêutica americana Eli Lilly iniciou o primeiro teste clínico com esses compostos. Trabalha-se ainda com uma alternativa atrelada à imunidade — e, curiosamente, ela trata de frear as respostas dos anticorpos, em vez de alimentá-las. A explicação: o novo coronavírus se espalha de forma tão avassaladora que, em muitos casos, a reação do sistema imunológico é excessiva e desproporcional. Diz o infectologista Gerson Salvador, especialista em saúde pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP: “O resultado é uma inflamação exagerada”. E o que poderia fazer bem pode matar. É preciso, portanto, dar um basta no exército de defesa, para usar metáfora muito comum. Os anti-inflamatórios, como os corticoides e o interferon (desenhado originalmente para hepatite), têm apresentado bons resultados.
Ressalve-se, contudo, para evitar louvações exageradas, ser improvável que apenas uma solução medicamentosa aponte para a bola de prata contra a Covid-19. Usar os anticorpos — por meio de plasma ou barrando os demasiadamente glutões — é um modo de atacar a infecção. Os cientistas acreditam que o futuro está em combinações dessas terapias com o uso de antivirais, como o remdesivir. Até que surja uma vacina (e há bilionária corrida para alcançá-la), a rainha de todos os mecanismos de imunidade, a maestrina a conduzir as tropas afeitas a expulsar os batalhões perversos.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690