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A era do doutor robô

O Brasil autoriza as consultas pela internet, o que terá um impacto incancelável no relacionamento entre médico e paciente

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h00 - Publicado em 8 fev 2019, 07h00

Poucos contatos humanos são mais reverenciados que o diálogo entre um médico e seu paciente — aquela troca, nem sempre fácil, às vezes francamente tensa, entre o profissional que zela pela saúde alheia e a pessoa que teme estar se aproximando da pior das notícias. Tem sido assim desde que Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), o pai da medicina, intuiu a necessidade de detalhar as doenças de quem o procurava para chegar ao diagnóstico, inicialmente com muita conversa, depois com cuidadosos exames. Desse modo, com variações mínimas, passaram-se séculos. Nos últimos anos, dada a explosão tecnológica que destruiu muitas atividades e inventou outras, abrindo atalhos inimagináveis para a humanidade, também a medicina passou a atravessar aceleradas modificações — e no centro da revolução está a convivência entre homens e mulheres de jaleco e os enfermos. Ela sempre exigiu o contato pessoal, a presença física no consultório, mas essa era está chegando ao fim.

Na semana passada, o Conselho Federal de Medicina (CFM), o órgão que regula a atividade, divulgou uma resolução de doze páginas. Nela, autoriza e incentiva o recurso à telemedicina, ou seja, o uso das inovações eletrônicas e dos meios de comunicação que surgiram com a internet para a prática de uma medicina que já não exige o contato físico. A resolução — que entra em vigor dentro de noventa dias — permite, por exemplo, que os médicos atendam seus pacientes através de um simples vídeo, coisa que, até agora, era expressamente proibida.

AQUI - Uso em hospital de São Paulo: o recurso foi aceito pelos doentes
AQUI – Uso em hospital de São Paulo: o recurso foi aceito pelos doentes (Jefferson Coppola/VEJA)

Telos, em grego, raiz da expressão telemedicina, significa distância. E é justamente a distância, o avesso da proximidade, que produz a estranheza. A inexistência do encontro pessoal pode parecer a negação de um princípio básico ensinado em início de carreira: a medicina de qualidade se faz sobre a tríade “ver, sentir e escutar”. Diz Renato Anghinah, professor de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: “Conhecer o paciente é essencial. O médico precisa saber da história de vida, da família, dos problemas e frustrações de cada doente que chega ao consultório. Quanto mais empatia houver com o paciente, mais informações ele conseguirá coletar”.

Empatia, eis um conceito-chave para acompanhar a novidade. Estudo conduzido pela Universidade da Califórnia revela que, em qualquer sociedade, apenas 7% da comunicação emocional ocorre através da palavra, enquanto 38% são dados pelo tom de voz e 55% pela postura e pelo contato visual. Será que, com os recursos da inteligência artificial, com a distância física proporcionada pela tecnologia, haverá espaço para uma comunicação completa entre médico e paciente? Ainda não há resposta para essa questão, mas as primeiras reações à decisão do CFM mostraram que as resistências são grandes. Conselhos regionais alegaram não ter participado da elaboração das normas. Chegou-se a pedir inclusive a suspensão do documento. O CFM refutou as críticas declarando que a resolução foi resultado de dois anos de amplas discussões deflagradas em todo o país, e não aceitou adiar sua publicação.

Robôs em hospital de Bangcoc
LÁ FORA – Vestida de enfermeira, máquina em centro médico da Tailândia leva exames e remédios para os quartos (Athit Perawongmetha/Reuters)
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Não será uma adoção fácil, e nas dores iniciais de qualquer parto é sempre bom olhar para experiências mais antigas. Nos Estados Unidos, a medicina baseada na tecnologia foi muito celebrada nos últimos trinta anos, desde a popularização do computador doméstico e, depois, com a chegada da internet. O efeito colateral: o esfriamento da relação entre o médico e o paciente. Ancorados nas máquinas, auxiliados por algoritmos, os especialistas são capazes de revelar detalhes duros do prognóstico e apontar chances de cura com extrema objetividade, mas sem exibir envolvimento emocional. A relação médico-paciente ficou técnica, fria, impessoal.

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(Arte/VEJA)

A partir dos anos 2000, como reação a esse estado de coisas, surgiu entre os americanos um movimento de “humanização na medicina”, que prega a reaproximação do profissional com o paciente. As faculdades criaram disciplinas específicas para ensinar a boa conduta de um médico. Os críticos do uso da telemedicina afirmam que, por mais que o vídeo tenha alta resolução, que a conexão seja boa, que o microfone tenha bom alcance e o médico do outro lado da tela seja experiente, a consulta a distância pulveriza o convívio primordial. “A humanização precisa ser um princípio básico também da telemedicina”, diz um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, Chao Lung Wen, professor da USP.

Em termos práticos, como se dará essa humanização? Como contraponto ao “ver, sentir e escutar” da medicina tradicional, os entusiastas da telemedicina baseiam-se em uma trinca diferente: “praticidade, redução de custos e ampliação do acesso à saúde”. O Hospital Albert Einstein, em São Paulo, é uma instituição que usa o recurso de forma experimental desde 2012. Circula, em seus corredores, um robô com jeitão de enceradeira, controlado por celular, cuja missão é visitar os pacientes nos quartos. No topo do robô, numa tela que funciona à guisa de cabeça, aparece o médico, que pode estar a milhares de quilômetros de distância. Parece coisa de seriado futurista, mas está acontecendo neste momento. A telemedicina funciona? No Einstein, um projeto de orientação aos pacientes a distância evitou 83% das idas desnecessárias à emergência e obteve 96% de aprovação dos usuários. “A telemedicina agrada aos pacientes, evita desperdícios e desafoga o pronto-socorro”, diz Sidney Klajner, presidente do Albert Einstein.

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Saliente-se, contudo, que a telemedicina não serve para todos os momentos. Pode ser útil para situações pontuais, como nos casos de acompanhamento pré-na­tal e mesmo depois do nascimento, já que as mães podem receber instrução remotamente sobre a melhor forma de amamentar o bebê ou sanar as angústias tão naturais dessa fase da vida. No entanto, a telemedicina não serve — pelo menos no estágio em que se encontra hoje — para pacientes com queixa de dores abdominais ou para aqueles que precisam realizar exames ginecológicos e urológicos. Muito menos para dar o diagnóstico de um câncer. “A medicina virtual dificilmente conseguirá ser tão completa quanto a consulta presencial”, diz o cirurgião oncológico Ademar Lopes, do A.C. Camargo.

Na resolução divulgada na semana passada, o CFM chancelou a cirurgia a distância (mediada pelos braços de um robô), o diagnóstico a distância (com os dados de exames transmitidos pelo computador) e a triagem a distância (uma orientação para o próximo passo do cuidado), entre outras modalidades (veja o quadro abaixo). Para consultas, a regra impõe uma relação prévia entre o médico e o paciente. Ou seja: não é permitido marcar consulta virtual com um cardiologista desconhecido. O contato inaugural tem de ser cara a cara, presencial. A consulta a distância pode servir para contatos posteriores em que médico e paciente queiram discutir o resultado de um exame ou fazer o acompanhamento de situações pontuais. A exceção, segundo o CFM, é para as pessoas que vivem em regiões remotas do país, embora não se tenha dito ainda quais são elas.

A consulta a distância, num país desigual como o Brasil, porém, tem limites — e nota-se aí a fragilidade do lema “ampliação do acesso à saúde”. Como ampliar o acesso à telemedicina no Nordeste se nessa região somente 64% das pessoas estão conectadas à internet, contra 81% no Sudeste? Ar­gu­menta-se que a medicina a distância é promissora para os doentes crônicos. Sete em cada dez idosos vivem com problemas como hipertensão, diabetes ou colesterol alto. Um acesso remoto ao médico evitaria deslocamentos cansativos e resolveria situações emergenciais com mais facilidade. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, em 2017, o Brasil superou a marca de 30 milhões de idosos. O problema é que somente 25% da população brasileira com 60 anos ou mais, um dos alvos evidentes da telemedicina, usa a internet. “É preciso que haja uma participação ativa do governo. Se as novas práticas forem bem aplicadas, vamos ter uma redução de filas em hospitais e melhor atendimento nas localidades isoladas, sem acesso à saúde”, diz Roberto Stryjer, fundador da Telecardio.

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Há obstáculos, sem dúvida, mas parece inexorável que, num futuro muito próximo, vejamos cada vez mais bons exemplos da telemedicina. Imaginava-se, lá atrás, que o bom gerente de uma instituição bancária seria personagem vitalício, que as filas à frente dos caixas eram uma imposição sem saída. Os aplicativos de instituições financeiras, cada vez mais práticos e seguros, estabeleceram um novo mundo — tão cômodo que quase já nos esquecemos de como era antes. Será assim com a medicina. Vivemos agora um extraordinário ensaio geral, como comprovam o robô do Einstein e outros exemplos internacionais. O Reino Unido, os Estados Unidos e a Tailândia já praticam a telemedicina há um bom tempo — fizeram muito sucesso os vídeos e as fotografias de uma simpática enfermeira de alumínio, um autômato que distribui exames e remédios num hospital de Bangcoc. Nos EUA, 76% dos hospitais usam a telemedicina e 35 estados têm leis próprias em torno do assunto. Mas existe evidente espaço para crescimento. Uma pesquisa americana realizada pela Physicians Foundation com mais de 8 000 especialistas informa que apenas 18,5% dos médicos usam alguma forma de tecnologia para diagnóstico remoto. Haverá expansão porque ela resulta em economia e, afinal de contas, é sempre disso que se trata (“redução de custos”, não nos esqueçamos, é um dos lemas da telemedicina).

Na Inglaterra, um serviço de cuidados a distância para idosos com doenças crônicas reduziu em 15% as visitas de emergência; em 20% as admissões hospitalares; em 14% a ocupação de leitos hospitalares; e em 45% as taxas de mortalidade. São números que explicam como e por que a tecnologia se expande cada vez mais no campo da saúde. Não por acaso, proliferam, especialmente nos Estados Unidos, os aparelhos de uso doméstico preparados para avaliações médicas e ingestão de medicamentos em casa (veja o quadro acima).

Doutor e paciente
ANOS 50 – A consulta virtual será tão humanizada como a do médico de família? (FPG/Hulton Archive/Getty Images)

A jornada da medicina colada às descobertas da ciência e da tecnologia é um belo capítulo da inteligência humana, e as inclinações luditas são, quase sempre, apenas uma manifestação do atraso. Você ainda será atendido por um robô — eis o que já era possível prever lá atrás, em 1959, quando médicos da Universidade de Nebraska deram o primeiríssimo passo e transmitiram exames neurológicos a estudantes em todo o câmpus por meio de televisores. No fim dos anos 1960, a Nasa, a agência espacial americana, deu o empurrão definitivo. Os cientistas estavam preocupados com os efeitos fisiológicos da gravidade zero nos astronautas. Para isso, criaram-se formas de estabelecer a distância um monitoramento de funções fisiológicas como frequência cardíaca, pressão arterial e temperatura. Eles estavam longe, no lugar mais longe possível, na franja da Lua. A necessidade de saber o que lhes ocorria impulsionou a telemedicina — que está cada vez mais próxima de nós.

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Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621

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