52% dos brasileiros ganharam peso na pandemia, mostra pesquisa
Preocupações, isolamento e trabalho em casa, com comida sempre por perto, acendem o alerta: uma parcela cruzou a perigosa linha da compulsão alimentar
A combinação de rotina alterada, ansiedade, reclusão e finanças incertas, aliada ao trabalho em casa (com lanchinhos ao alcance da mão o tempo todo), resultou em mais um fenômeno a ser cravado na vasta conta dos efeitos pandêmicos: o aumento dos distúrbios de alimentação. Pesquisa do Instituto Ipsos mostrou que 52% dos brasileiros engordaram ao longo do último ano e meio, e não foi pouca coisa — a média de aumento de peso é de 6,5 quilos. Amostra inequívoca da subida do ponteiro da balança é o fato de vídeos nas redes sociais com a hashtag #transtornoalimentar estarem na casa dos 60 milhões de visualizações. A título de vago consolo, note-se que quase todo o planeta ficou mais rechonchudo nos meses passados entre quatro paredes. Mais grave ainda, muita gente ultrapassou o limite do eventual ataque à geladeira no meio da noite e ingressou no território minado de distúrbios graves como anorexia, bulimia e, campeão disparado, compulsão alimentar.
Válvula de escape das mais conhecidas quando a vida fica difícil, a comida sempre por perto, seja na própria despensa, seja via aplicativos, contribuiu para desestabilizar pacientes sob controle e aumentar a triste estatística das vítimas dos distúrbios ligados à mesa. Estudo realizado pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, constatou que o número de internações de jovens sofrendo desse tipo de mal mais que dobrou nos primeiros doze meses de quarentena. Na Alemanha, levantamento da Clínica Schoen Roseneck, um centro de referência do país, revelou que 41% dos que tiveram alta em 2019 registraram piora dos sintomas no período em que a humanidade se isolou.
Uma nítida manifestação do crescimento dos transtornos alimentares no Brasil está na procura por tratamento nas seis principais clínicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, que subiu até 50% (veja no quadro acima). Sem poder sair para trabalhar e preocupada com as despesas, a maquiadora Tamiris Sindice, 25 anos, de São Paulo, relata que começou a comprar guloseimas aos montes todos os dias. Saiu da quarentena com 32 quilos a mais, diagnóstico de compulsão e a ponto de desenvolver diabetes e obesidade. “No ápice da doença, deixei de pagar conta para comprar doces”, diz Tamiris, que está com a compulsão sob controle através de antidepressivos e muita terapia. De acordo com o psiquiatra José Carlos Appolinario, da comissão de transtornos alimentares da Associação Brasileira de Psiquiatria, os excessos, se não são tratados a tempo, vão acarretar outros problemas de saúde. “Quase 70% dos diagnosticados com compulsão evoluem para a obesidade”, afirma.
Mesmo antes de a Terra parar, o Brasil já padecia de uma epidemia de excesso de peso — que não decorre, necessariamente, de transtornos como a compulsão alimentar. Segundo o IBGE, entre a população acima de 20 anos, 26,8% são obesos, um índice que mais do que dobrou em comparação com a pesquisa anterior, de 2003. Praga universal, a obesidade, que afeta mais de 40% dos adultos americanos e é por si só um risco para a saúde, também eleva as chances de aparecimento de uma série de doenças de alto risco, como hipertensão, diabetes, hipertrofia cardíaca, câncer de bexiga, acidente vascular cerebral, infarto e apneia de sono.
A linha divisória entre um ou outro episódio de comilança exagerada e o quadro de compulsão é tênue e pode passar despercebida até ser tarde demais e o transtorno estar estabelecido. Considera-se comportamento compulsivo a ingestão exagerada de alimentos em curto espaço de tempo — em geral, menos de duas horas a cada episódio —, mesmo sem nenhum sinal de fome. A pessoa passa a comer de forma acelerada e, em muitos casos, escondida, por vergonha de seu descontrole. No auge da crise, o compulsivo chega a ingerir 20 000 calorias por dia, dez vezes mais do que uma pessoa normal. “Compulsão alimentar não é comer duas fatias de bolo de uma vez. É engolir três bolos inteiros”, compara a nutricionista Marcela Kotait, do Programa de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas (Ambulim), de São Paulo.
Nos casos mais graves, ingere-se tudo o que se encontra pela frente, inclusive alimentos crus e congelados. “Essa relação de dependência com a comida aprisiona e limita. Não representa prazer de comer, mas, sim, medo e frustração”, diz a psicóloga Fernanda Sader, 23 anos, de Campos dos Goytacazes, no interior do Rio de Janeiro, que engordou 20 quilos no fatídico ano pandêmico. Para a influenciadora Juliana da Motta, 27 anos, de Itaboraí, no estado do Rio, o pior momento foi o dia em que pediu vários pratos de doces e salgados ao mesmo tempo em aplicativos de delivery e acabou passando mal de tanto comer. “Lembro que, enquanto eu me fartava, achava normal e prazeroso. Mas depois me senti muito infeliz, frustrada com o dano que estava causado à minha saúde”, relata.
Os especialistas destacam a necessidade de os familiares estarem sempre de olhos abertos para os sinais de distúrbios alimentares nas pessoas à sua volta, que incluem alterações bruscas de peso, dietas restritivas e estoques de comida escondidos pela casa. “Elas mesmas dificilmente percebem que estão doentes”, alerta a psicóloga Patrícia Xavier, da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (Astral). A influenciadora digital Camila Monteiro, 30 anos, de São Paulo, começou a ganhar peso ainda na adolescência, mas só em 2019 foi diagnosticada com compulsão alimentar. Tratou-se, controlou o distúrbio, mas, no isolamento da pandemia, sofreu um aborto espontâneo e os episódios recomeçaram. “A causa da minha recaída foi um conjunto de fatores. Não podia visitar amigos, nem sair de casa para arejar a cabeça. Até minha psicóloga só me atendia remotamente, e passar por tudo o que passei on-line é muito diferente de estar cara a cara com quem pode te confortar”, explica. Com tratamento e terapia, Camila voltou a se estabilizar e está grávida de gêmeos. Sabe, no entanto, que precisa estar sempre alerta para conseguir vencer uma doença insidiosa que, em épocas de crise, ataca com mais vigor ainda.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757