Um surto vergonhoso
Por trás da recente explosão de casos de sarampo na Europa estão os movimentos antivacina, que pregam irresponsavelmente o fim da imunização das crianças
Um espectro ronda a Europa — o espectro do sarampo. “Uma tragédia”, nas palavras de Zsuzsanna Jakab, diretora regional da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em um ano, o número de casos da doença no continente aumentou 300%. No mais recente levantamento, os registros já chegavam a 21 315, com 35 mortes. Há quinze países no vergonhoso rol dos que voltaram a sofrer com uma enfermidade antiga. Na liderança do surto aparecem Romênia, Itália, Ucrânia, Grécia e Alemanha.
Esses países têm uma característica em comum: a baixa taxa de imunização. A OMS recomenda que pelo menos 95% da população se proteja com vacinas — é o patamar médio do Brasil. No caso da Itália, a adesão não atinge 86%. A razão para não imunizar as crianças contra o sarampo decorre da ideia — falsa e equivocada — de que a vacina deve ser evitada porque causaria outros males. Os movimentos antivacina estão se disseminando pela Europa, importados dos EUA.
Com os nomes mais variados, como Mothers Naturally Nurturing (Mães Nutrindo Naturalmente) e I Am Anti Vaccine (Sou Antivacina), os grupos contrários à imunização usam argumentos obscuros. Entre eles: remédios homeopáticos dariam conta do recado e crianças nascidas de parto normal teriam os anticorpos necessários para qualquer tipo de proteção. O mais estapafúrdio argumento recorre à tese do gastroenterologista inglês Andrew Wakefield. Em 1998, o médico publicou, na prestigiosa revista científica The Lancet, um artigo em que associou a vacina tríplice (contra caxumba, rubéola e sarampo) a um risco aumentado de autismo. No estudo, Wakefield dizia ter acompanhado doze crianças que desenvolveram a doença depois de tomar a tríplice. Sonegou duas informações: já havia indícios de autismo nas crianças e o médico preparava um processo contra um fabricante de vacinas. Desmascarado por uma reportagem do jornal The Sunday Times, Wakefield foi investigado pelo Conselho Médico Geral do Reino Unido. Em 2010, acusado de fraudador, antiético e desonesto, perdeu o registro profissional. A The Lancet pediu desculpas e retirou a publicação de seus arquivos. Mas o estrago estava feito: muitos acreditaram na lenga-lenga de Wakefield — e os reflexos são sentidos agora.
No livro Imunidade (Editora Todavia), a escritora e mãe de primeira viagem Eula Biss faz uma analogia ao tratar das pessoas que, para escapar do que consideram “efeito rebanho”, fogem da vacina que todos tomam. Escreve Eula: “Aqueles de nós que evitam a mentalidade de rebanho tendem a preferir uma mentalidade de fronteira, na qual imaginamos nosso corpo como uma fazenda isolada de que cuidamos bem ou mal. Esse pensamento sugere que a saúde da propriedade vizinha não nos afeta, desde que a nossa seja bem cuidada”. Em A Sabedoria das Multidões, o jornalista James Surowiecki não deixa espaço para dúvidas. Há exemplos de multidões que tomam decisões ruins — o linchamento é um caso contundente —, mas invariavelmente, observa ele, “os grandes grupos costumam resolver problemas complexos que escapam aos indivíduos”. A vacinação em massa faz parte desse saudável movimento, e as imensas filas formadas no verão brasileiro para tomar a vacina contra a febre amarela são a comprovação do fenômeno, ainda que movidas a desespero. No entanto, é melhor fazer fila do que ignorar a vacina — e, assim, pôr toda uma comunidade em risco.
Os temores atuais, com a grita contra as vacinas, são uma constrangedora viagem ao passado, travestida de respeito ao inalienável direito individual dos pais de tomarem a decisão que bem entenderem. O infectologista Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Arboviroses, acerta no alvo: “Dizer ‘não’ é um direito, mas, se afeta a saúde pública, esse direito deixa de ser inalienável”. No século XIX, a vacinação contra a varíola provocava uma ferida que deixava cicatrizes. No sermão de um arcebispo anglicano, em 1882, a vacinação equivalia a uma injeção de pecado, “uma mistura abominável de corrupção, borra de vício humano e resíduos de apetites veniais que depois, na vida após a morte, pode esmagar a alma”. Eula Biss resgatou um folheto de 1881 intitulado “O vampiro da vacinação”, com um alerta sobre os riscos da “poluição universal” transferida pelo vacinador ao “bebê puro”. Eula anotou: “Conhecidos por se alimentar de sangue de bebês, os vampiros daquela época se tornaram uma metáfora pronta para os vacinadores que infligiram ferimentos às crianças. Os monstros sugadores de sangue do folclore antigo eram horríveis, mas os vampiros vitorianos podiam ser sedutores”.
É inadmissível, a não ser em seriados da Netflix, no cinema ou na boa literatura, aceitar medos tão primevos — é inadmissível porque agir dessa maneira vai de encontro aos avanços da medicina e aos novos conhecimentos da saúde pública. Uma única dose de vacina contra a varíola administrada em meados do século XX representa desafio maior ao sistema imunológico que todas as 27 imunizações para catorze doenças dadas hoje em dia às crianças até os 2 anos.
O vírus causador do sarampo tem enorme poder de disseminação. É transmitido por meio das vias respiratórias, sobretudo em espirros e tosses. Pode provocar pneumonia, diarreia e, em casos graves, cegueira, surdez e retardo mental. O primeiro passo para a criação da vacina foi dado na década de 50, quando os médicos John Enders e Thomas Peebles isolaram o vírus responsável pela doença e trabalharam com o microrganismo em cultura celular. Até 1963, quando a imunização teve início, o sarampo era uma das principais causas de morte entre crianças. Hoje, a vacina (aplicada no primeiro ano de vida, com reforço a partir dos 15 meses de idade) salva meio milhão de crianças no planeta, anualmente.
E, no entanto, há quem a considere desnecessária. No Brasil, os movimentos antivacina já começam a chegar. O Facebook, por exemplo, abriga cerca de 10 000 seguidores em pelo menos quatro grupos. “Mas eles são incipientes e não impactaram a cobertura vacinal”, diz Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. O sarampo está erradicado no Brasil desde 2015. Há duas semanas, porém, o caso de um bebê venezuelano com sarampo, registrado em Boa Vista, capital de Roraima, preocupou as autoridades. De lá para cá, a Secretaria Estadual de Saúde já contou outros doze casos suspeitos em crianças de 5 meses a 10 anos, algumas brasileiras. Detalhe: Roraima tem baixa cobertura vacinal, 84% — e as vítimas não haviam sido vacinadas. Seria um humilhante retrocesso a confirmação da transmissão entre brasileiros, por representar o fim da erradicação da doença.
Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572