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Um risco no mapa do mundo

Um gigantesco iceberg, do tamanho do DF, desprende-se de uma barreira de gelo na Antártica e reacende o alerta sobre as ameaças que rondam o planeta

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 19h15 - Publicado em 13 jul 2017, 12h52

“Dada a causa, a natureza produz o respectivo efeito no modo mais breve que ele pode ser produzido”, acreditava o gênio renascentista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519). Não se sabe com precisão o que terá provocado o fenômeno desta vez, mas a natureza mostrou de novo que, dada a causa, ela produz, sim, o efeito, no modo mais breve possível. Depois de duas décadas de observações, os cientistas do Projeto Midas, que monitora regiões da Antártica, anunciaram na quarta-feira 12 que um gigante de gelo de 5 800 quilômetros quadrados, 190 metros de espessura e 1 trilhão de toneladas de peso se desprendeu da Plataforma Larsen C, na região oeste do continente branco. Trata-se de um dos maiores icebergs de que se tem notícia: sua área é equivalente à do Distrito Federal e quatro vezes a do município de São Paulo. Posto à deriva, muito provavelmente — segundo a maioria dos especialistas que se manifestaram a respeito — por motivos “naturais”, e não em consequência do aquecimento global capitaneado pelo homem, o formidável bloco gelado tem agora um destino intrigante. O que parece seguro é que resulta pequeno o seu potencial para provocar, por exemplo, inundações sem parâmetros ao redor do único planeta que temos por enquanto para habitar — viver em Marte ainda é coisa de ficção científica. O motivo é simples: o espetacular naco de gelo sempre esteve flutuando no Mar de Weddell, ainda que colado à imensidão alva, e não houve por isso nenhuma elevação do nível dos oceanos.

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(VEJA/VEJA)

Explicou a VEJA a geógrafa italiana Anna Hogg, especialista em observação de geleiras via satélite do Instituto de Ciência do Clima e da Atmosfera, da Universidade de Leeds, no Reino Unido: “O que aconteceu tem efeito similar ao do derretimento de cubos de gelo em um drinque — o volume do líquido não causa uma alteração significativa para fazer a bebida transbordar do copo”. O que não sai da cabeça dos estudiosos é outra coisa: a possibilidade de toda a Plataforma Larsen C, uma espécie de prolongamento flutuante das incomensuráveis geleiras da Antártica, entrar em colapso junto com outras regiões congeladas, o que poderia elevar o nível dos oceanos, afogando, assim, metrópoles inteiras, como o Rio de Janeiro e Nova York. Essa hipótese, no entanto, é remota, ou, pelo menos, extrema. Praticamente todo o gelo da Terra teria de descongelar para causar tal efeito.

O RIO AFOGADO – Cena do filme 2012: a pior ficção científica, segundo a Nasa
O RIO AFOGADO – Cena do filme 2012: a pior ficção científica, segundo a Nasa (//Divulgação)
PIONEIROS O norueguês Roald Amundsen e o inglês Rober Scott: corrida ao Pólo Sul, vencida pelo primeiro, em 1911   O RIO AFOGADO Cena do filme 2012: a pior ficção científica, segundo a Nasa
PIONEIROS – O norueguês Roald Amundsen e o inglês Rober Scott: corrida ao Pólo Sul, vencida pelo primeiro, em 1911 (Anders Beer Wilse/)

A preocupação dos cientistas tem um motivo concreto. Antes da Larsen C, outras duas plataformas de gelo próximas a ela, a Larsen A e a B, enfrentaram um processo semelhante ao que culminou no fenômeno da semana passada — em 1995 e 2002, respectivamente. Um pedaço de ambas as barreiras de gelo se descolou e, em pouco tempo, elas se desintegraram. Apesar desses antecedentes históricos, há indícios de que os desdobramentos do episódio da Larsen C não serão os mesmos. “No caso das geleiras anteriores, nós tínhamos identificado vários lagos ao longo da superfície congelada, o que indicaria maior fragilidade. O mesmo não acontece agora com a Larsen C”, argumenta Anna Hogg.

Embora o derretimento das grandes geleiras venha com frequência à mente quando se pensa nos prejuízos causados pelo aquecimento global — incluindo a imagem de indefesos ursos-polares tentando se equilibrar em finíssimas placas de água congelada —, é preciso sublinhar que, desta feita, as mudanças climáticas trazidas pela elevação da temperatura do planeta por obra e graça do homem predador nada ou muito pouco tiveram a ver com o desprendimento do supericeberg da Plataforma Larsen C. Não se está pretendendo aqui, é claro, digamos, “derreter” as teses ambientalistas que, em última instância, sustentam o Acordo de Paris. Contudo, não há nenhuma prova contundente que associe um fenômeno ao outro. A propósito, levando-se em conta a abalizada palavra do galês Adrian Luckman, o principal pesquisador do Projeto Midas, o aquecimento global deve ser mais motivo de preocupação, pelos danos que já provoca, do que o iceberg desprendido da Larsen C. “Aquele bloco de gelo vai se afastar lentamente da plataforma e se dividir ao longo dos próximos anos”, assegurou ele a VEJA. Luckman esclareceu que o “nascimento” de icebergs é muito comum, porém admitiu que uma formação daquela magnitude consiste em um fato geográfico surpreendente.

Apesar de não ser um perigo iminente, o.k., estamos todos de acordo nisso, ninguém sabe como a Larsen C reagirá a sua nova configuração, reduzida em 12% de sua área original por força do desprendimento do supericeberg. De acordo com o glaciologista e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, Jefferson Simões, pioneiro do Projeto Antártico brasileiro, a principal dúvida é mesmo em relação à plataforma como um todo. Caso ela se desintegre como as antecessoras, não se sabe se o restante do gelo concentrado naquela porção da Antártica também escoará para o mar com facilidade, pois a plataforma funciona como uma espécie de barreira. Além disso, não há como prever se o volume será significativo para aumentar o nível dos oceanos. “Um cenário catastrófico, se vier a acontecer, não será antes de dois ou três séculos”, assevera Simões. Mesmo antes do caos aquático, 30 a 40 centímetros a mais de água trariam prejuízos financeiros bilionários para as cidades costeiras.

O descolamento do iceberg
(Reprodução/Nasa)

Vista sob um ângulo mais completo, a Antártica, com seus 14 milhões de quilômetros quadrados — somadas as partes ocidental e oriental —, vem há tempos dando sinais de que é um continente ameaçado. Para se ter uma ideia, a Geleira Pine Island, situada também na parte ocidental, com cerca de 400 metros de espessura, perdeu 45 metros de espessura entre 1994 e 2012. Todos os anos, na região oeste da Antártica, 125 000 metros cúbicos de gelo são perdidos. Na porção leste fica a Geleira Totten, com mais de 500 000 quilômetros quadrados — se derreter, ela acrescentará sozinha outros 4 metros ao nível do mar.

As fantasias que surgem com as previsões de caos absoluto em decorrência do derretimento das geleiras tomam conta do imaginário na ficção científica. O filme 2012, dirigido por Roland Emmerich e lançado em 2009, conta a história de dois cientistas que descobrem os efeitos de tempestades solares no rápido aquecimento do núcleo da Terra, desencadeadores de uma série de desastres naturais. Numa das cenas, o Cristo Redentor é destruído. Um consolo: em 2011, a Nasa nomeou o trabalho de Emmerich como o pior longa de ficção científica de todos os tempos.

Antes de ser objeto de Hollywood, a Antártica foi motivo de disputa entre o britânico Robert Scott e o norueguês Roald Amundsen. Ambos queriam o título de primeiro explorador a alcançar o Polo Sul. Mesmo tendo partido depois, Amundsen chegou antes, em dezembro de 1911. Foi apenas em 1957, o Ano Geofísico Internacional, que se chamou atenção para a pesquisa científica na Antártica. Na ocasião, buscou-se incrementar os estudos e garantir apoio mundial para a exploração do continente. O Brasil manteve uma estação no local entre 1984 e 2012, quando um incêndio a destruiu. A Antártica é hoje um território internacional, Patrimônio da Humanidade — e esse não é apenas um título honorífico. Qualquer coisa que a afete afetará o planeta. A natureza não demora a dar suas respostas.

Com reportagem de Carla Monteiro

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Publicado em VEJA de 19 de julho de 2017, edição nº 2539

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