Um Lenin diferente
Presidente equatoriano, cujo prenome é uma homenagem ao revolucionário russo, se reinventa para seguir comandando o país sem o fantasma de seu antecessor

Quando exerceu o cargo de vice-presidente do Equador, entre 2007 e 2013, Lenín Moreno — o nome vem de Lenin, homenagem ao revolucionário bolchevique — esquivou-se dos confrontos promovidos por seu mentor, Rafael Correa. Com perfil de esquerda moderada, ele se concentrou em temas como ecologia e direitos dos portadores de deficiência. “Não gosto do poder. Gosto de ser subordinado. Gosto de me sentir dominado, como quando estou em casa com minha esposa e três filhas”, disse ao jornal inglês The Guardian, em 2013. O humor, como se vê, foi uma de suas ferramentas para se recuperar de um tiro nas costas durante um assalto, em 1998, que o deixou paraplégico. É uma diferença e tanto do Moreno que se tornou presidente em maio de 2017 e, na semana passada, condenou seu antecessor ao ostracismo, cortando sua influência nas principais instâncias do Executivo e do Judiciário e construindo pontes com a oposição. Com 70% de aprovação, Lenín Moreno é atualmente o chefe de governo mais benquisto da região.
“Na biografia de Moreno, não havia nada que sinalizasse tal sagacidade. Ele se adaptou rápido, agindo sob o peso das circunstâncias”, diz o cientista político equatoriano Esteban Nicholls, da Universidade Andina Simón Bolívar. Em setembro, quatro meses depois de assumir o poder, Moreno convocou um referendo. A consulta, realizada no domingo 4, deu vitória ao governo em todos os sete temas propostos. Cerca de 65% dos votantes optaram pelo fim da reeleição ilimitada, direito que permitiria a Rafael Correa disputar a Presidência pela terceira vez. Quase 75% aprovaram uma regra de ficha limpa, que proíbe os políticos condenados por corrupção de disputar cargos públicos. Outros 63% apoiaram uma reestruturação do Conselho de Participação Cidadã (CPC), órgão que nomeia promotores, integrantes do órgão eleitoral e juízes e estava lotado de nomes indicados por Correa.
A manobra afastou qualquer chance de o ex-presidente continuar influenciando a política equatoriana. Moreno prevaleceu nas disputas dentro do partido, o Alianza País, o que levou Correa a fundar outro movimento, o Revolução Cidadã, cuja abreviação traz as suas iniciais, RC. Mas o RC tem 22 cadeiras no Congresso, de um total de 137. Na campanha para o referendo, Correa, que vive na Bélgica com a mulher, retornou a seu país, onde foi recebido com frieza.
O humor dos equatorianos em relação a Correa começou a mudar com as denúncias de corrupção na estatal Petroecuador e em contratos do governo com — sempre ela — a Odebrecht. Além dos desvios, a própria gastança do governo anterior estagnou o PIB. “Se Moreno se mantivesse ao lado de Correa, ele levaria a culpa por seus erros. O atual presidente não tinha escolha”, afirma o cientista político Jaime Costales, da Universidade São Francisco de Quito (USFQ).
Ao mesmo tempo em que afastou a herança do ex-mentor Correa, Moreno aproximou-se das forças políticas que se indispuseram com o ex-presidente. “Ao chamar todos ao diálogo, Moreno passou a ser admirado pela tolerância, uma qualidade que Correa nunca demonstrou”, declara a economista Nancy Córdova, do instituto de pesquisas de opinião Cedatos, em Quito. Moreno também fez as pazes com a imprensa, com o empresariado e com setores da esquerda, como os indígenas e os sindicatos. “Correa governou com os oligarcas e foi contra os interesses dos trabalhadores várias vezes”, diz o historiador equatoriano Enrique Ayala Mora.
Para continuar governando, porém, Moreno precisará atender a uma múltipla gama de interesses, além de resistir às tentações autoritárias. Ele ainda pode, por exemplo, nomear os membros do CPC e influir na Justiça. “Se só escolher seus correligionários, como fez Correa, será escandaloso e minará seu apoio no futuro”, assevera Farith Simon, professor de direito na USFQ. A ver se esse Lenin continua sendo diferente.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2018, edição nº 2569