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Relatos perturbadores

Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos é acusado de espancamento, assédio sexual e ameaça de morte

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h23 - Publicado em 11 Maio 2018, 06h00

Aos 55 anos, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas está no auge da carreira. O premiado advogado trabalhista e pró-cidadania, como ele se descreve em seu currículo na internet, foi um dos fundadores da Comissão Nacional de Direitos Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e membro de órgãos importantes como a Comissão para Erradicação do Trabalho Escravo e a Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Sempre foi respeitadíssimo, principalmente pelo viés de seu trabalho, voltado à preservação de direitos sociais e trabalhistas. Tanto que, em 2012, a então presidente Dilma Rousseff o indicou para ocupar uma vaga na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), entidade reconhecida por vinte países que compõem a Organização dos Estados Americanos (OEA) quando o assunto é violação de garantias básicas. Em 2016, Caldas assumiu a presidência da Corte. Foi o segundo brasileiro a ocupar o posto — o que lhe conferiu mais visibilidade, poder e algum prestígio internacional. Tudo isso, agora, ameaça ruir.

Na quarta-feira 9, em Brasília, Roberto Caldas compareceu ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Estava lá na condição de investigado, não de juiz. Sobre ele recaem acusações de injúria, agressão, espancamento, ameaça de morte e assédio sexual — denúncias apresentadas por Michella Marys Pereira, companheira do magistrado até fevereiro passado. Segundo ela, em casa, o advogado brilhante, defensor de direitos elementares, comportava-­se como um marido desequilibrado, violento e protagonista de atos de extrema humilhação. Na audiência, Michella pediu, como medida protetiva, que seu ex-companheiro seja mantido a distância. O Ministério Público manifestou-se a favor do pedido, mas Caldas evitou assinar o termo judicial. Em busca de um acordo, ele comprometeu-se a não se aproximar da ex-­mulher. O veredicto do juizado deve sair nos próximos dias. Michella diz ter medo de que algo possa lhe acontecer.

O casal está separado há três meses. O início do fim do relacionamento está detalhado no Boletim de Ocorrência 1 275, registrado na Delegacia de Atendimento à Mulher no fim de abril. VEJA teve acesso ao documento — um libelo que, se comprovado, é absolutamente incompatível com a função de alguém responsável por resguardar direitos humanos. Nele, Michella conta que foi vítima de agressões durante os treze anos em que esteve casada com o juiz. O ápice da violência ocorreu em 23 de outubro do ano passado. De acordo com ela, Roberto Caldas, nesse dia, chegou em casa irritado e, sem motivo aparente, começou a xingá-la. Chamou-a de “vagabunda, bandida, ordinária”. Depois, deu-lhe socos na barriga, arrastou-a pelos cabelos e a empurrou escada abaixo. Transtornado, o juiz ainda ameaçou ir até a cozinha para pegar uma faca. “Vou te matar”, teria dito. Foi impedido pelos empregados da casa, que testemunharam tudo.

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(Sergio Dutti/.)

Ele me xingou de vagabunda, bandida, ordinária. Depois me puxou pelos cabelos, deu socos na minha barriga, me arrastou pela escada e disse que ia pegar uma faca para me matar.”

Michella Marys Pereira, ex-mulher do juiz Roberto caldas

Referência também nos meios acadêmicos, Caldas costuma escrever artigos, dar entrevistas e proferir palestras sobre direitos humanos. Em 24 de outubro do ano passado, menos de 24 horas depois de ter espancado a esposa e ameaçado matá-la, ele foi a uma faculdade de Brasília para falar a uma plateia de estudantes de direito sobre a importância do trabalho da Corte Interamericana. Os debates acabaram derivando para o problema da violência doméstica. Michella, uma das presentes, ouvia tudo. “Na palestra, ele defendeu que a mulher tem de ter o seu espaço e não pode sofrer agressão de espécia alguma. Nem física nem psicológica. E eu estava lá na plateia — cheia de hematomas”, contou a VEJA (confira a entrevista ao final da reportagem). Michella diz que os episódios do dia anterior — à exceção da ameaça de morte — faziam parte de uma rotina de brutalidade física e psicológica que começou nos primeiros meses de casamento.

O casal, que tem dois filhos e viveu treze anos em uma união estável, gozava de uma vida pública invejável, com direito a jantares finos, viagens a praias paradisíacas e uma casa cinematográfica. A residência, cujos 2 400 metros quadrados foram desenhados pelo badalado arquiteto Ruy Ohtake, está localizada em um dos bairros mais caros de Brasília, ocupa um terreno de 13 000 metros quadrados e tem ares de museu, com obras de arte e móveis assinados por Oscar Niemeyer e Athos Bulcão. Na intimidade, porém, a rotina do casal era infernal. A ex-companheira relata ao menos quatro vezes em que foi alvo de agressões físicas brutais e incontáveis situações humilhantes. A seu favor, Michella tem áudios desses momentos, que ela mesma gravou, e depoimento de testemunhas que presenciaram certas cenas.

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Os motivos — cuja natureza, obviamente, não abona agressão alguma— eram curiosamente fúteis. O primeiro ataque aconteceu em 2007, ano em que Caldas representou a Corte Interamericana de Direitos Humanos como advogado ad hoc, antes de ser nomeado juiz. Num determinado dia, conta a ex-mulher, Caldas se irritou com o cardápio do jantar, recheado de comidas nordestinas, as preferidas de Michella. Nervoso com as escolhas gastronômicas da companheira, ele quebrou um prato ainda na mesa. Na sequência, chamou-a para o quarto, onde lhe deu empurrões e puxões no cabelo. Por fim, a advertência: “Agora vá à delegacia. Eu quero ver quem vai acreditar em você”, desafiou. Michella, de fato, preferiu o silêncio. Um ano depois, acabou, novamente, sendo vítima do marido.

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(//Reprodução)

Acordei com ele passando a mão em mim. Quando abri os olhos, ele já veio me beijando. Subiu em cima de mim. Perguntei: ‘Você está ficando louco?’.”

Gisele Resio, babá, 34 anos

Em outro episódio, os dois estavam em Porto Alegre quando Caldas sentiu ciúme dos olhares que a companheira atraía. O jantar terminou mais cedo para ela. “O Roberto me tirou da mesa, me levou para o hotel. Lá, me deu uma surra. Puxou meus cabelos, me rodou no chão. Deu chutes nas minhas costas, na minha virilha, murro no rosto. Cheguei a Brasília toda roxa e com a cara inchada”, lembra-se. Sem saber o que fazer, ela pediu a uma amiga que fotografasse os hematomas que ficaram espalhados pelo corpo após a agressão. Depois que Michella decidiu denunciar o ex-­marido, as imagens foram recuperadas por ela e compõem um acervo que pode destruir a carreira de Caldas.

Estudante de direito, Michella acumulou, desde 2012, gravações de áudio capazes de demolir o decoro que se espera de um juiz de uma corte internacional, principalmente no que se refere a moralidade, ética e respeito. “Cachorra”, “safada” e “vagabunda” eram vocativos comuns que ele direcionava à companheira. Ameaças também faziam parte da rotina: “Michella, sai daqui que eu estou a ponto de explodir em cima de você, tá?”, disse em uma das conversas gravadas. Os áudios também deixam evidentes cenas de agressão física e humilhação. Em momentos de crise, Caldas impedia a esposa de dormir na mesma cama que ele. Reservava a ela o chão do closet, para onde ela carregava um colchão, um cobertor e um travesseiro. Ao amanhecer, envergonhada, tentava disfarçar, diante dos funcionários e dos filhos, o acampamento improvisado: fingia que usava o espaço para estudar.

O juiz Roberto Caldas é acusado também de assédio sexual. A VEJA, duas babás dos filhos do casal contaram ter sido assediadas pelo magistrado. Gisele Resio, de 34 anos, confessa que, ao longo de nove anos, foi alvo de várias tentativas. A primeira aconteceu quando ela estava dormindo, nas dependências dos empregados, e acordou com o chefe já sobre ela, tentando beijá-la. Assustada, ela exigiu que Caldas se retirasse. Um mês depois, com medo de ser prejudicada, acabou cedendo à insistência de Caldas e passou a relacionar-se com ele. “Na época eu estava numa situação muito difícil. Sou mãe solteira, cuidava do meu pai, da minha mãe e de meu filho. O emprego era muito importante para mim. E ele pagava muito bem. Fiquei com medo de ser demitida”, conta. Gisele e o chefe, ela diz, mantiveram um caso por mais de dois anos, e os encontros quase sempre aconteciam na casa da família.

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(Sergio Dutti/.)

Ele disse que meus olhos eram bonitos, se aproximou e tentou me beijar. Fiquei assustada e com medo. Não contei para ninguém.”

Nalvina de Souza, babá, 35 anos

Nalvina de Souza, de 35 anos, outra vítima, conta que era abordada enquanto trabalhava. A mais grave das situações aconteceu durante uma faxina. Roberto Caldas entrou no banheiro em que a babá estava e elogiou a cor dos olhos dela. Pediu para vê-los mais de perto. “Ele falou: ‘Deixa eu ver’. Aí ele veio para me beijar e eu me afastei. Fiquei sem chão, sem saber o que fazer”, conta. “Depois, foi muito difícil (vir trabalhar). Eu pensava que ele poderia me atacar a qualquer hora. Ficava com muito medo.” Nalvina jamais aceitou manter relações com o chefe — e acabou sendo ameaçada de demissão. O risco de perder o emprego, somado à situação de pavor que sentia toda vez ao entrar na casa, fez a babá desenvolver um quadro de ansiedade e depressão atestadas por um médico. Michella conta ter descoberto os ataques do marido às empregadas pouco antes da separação. “Das nove funcionárias, cinco me disseram ter sido assediadas”, afirma. Os depoimentos das vítimas foram anexados ao processo. Procurado por VEJA, Caldas preferiu não falar com a reportagem. Seu advogado, o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, negou qualquer tipo de agressão física e resumiu como “tumultos mútuos e agressões verbais” o que o casal protagonizou ao longo de muitos anos. A rotina de violência contra a mulher é uma dolorosa realidade no país, mas é ainda mais chocante quando se trata de um caso em que o agressor tem todo um currículo de combate ao mal que ele próprio é acusado de cometer.


“Chute nas costas, na virilha e murro no rosto…”

No processo que tramita na Justiça de Brasília, Michella Marys Santana Pereira, de 36 anos, anexou depoimentos, fotos e testemunhos das agres­sões que afirma ter sofrido do marido em treze anos de casamento. Em entrevista a VEJA, ela conta que chegou a apanhar quando estava grávida — e explica por que demorou tanto a denunciá-lo.

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Violência – Nas imagens acima, feitas por uma amiga de Michella, depois de, segundo ela, levar uma surra de seu ex-marido (//Arquivo pessoal)

Quando o seu ex-marido começou a ficar violento? A primeira vez que ele me bateu foi em 2007. Eu não podia comer as comidas de que gostava porque parecia que tudo aquilo de eu gostava dava ódio nele. Eu tinha pânico, parecia criança. Nesse dia, ele viu o que eu estava comendo e não gostou. Quebrou um prato. Depois, no quarto, ele me empurrou e puxou meu cabelo. E falou: “Agora vá à delegacia. Eu quero ver quem vai acreditar em você”.

Quando foi a agressão seguinte? Em 2009. Fomos ao Rio Grande do Sul para acompanhar a campanha de Tarso Genro (PT) e, durante um jantar, um assessor dele ficou olhando para mim. O Roberto me tirou da mesa, me levou para o hotel e, lá, me deu uma surra. Puxava meus cabelos, me rodava no chão. Deu chutes nas minhas costas, na minha virilha, murro no rosto. Cheguei a Brasília toda roxa e com a cara inchada. E eu não tinha com quem conversar. Estava com vergonha. Liguei para a minha mãe e pedi que rezasse por mim.

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As agressões continuaram? Ele me deu um chute quando eu estava grávida do meu filho mais novo. Perto da virilha. Seria leviano dizer que tive uma gravidez de risco por causa disso. Mas, por coincidência ou não, ele me chutou dois ou três dias antes do Natal e eu comecei a sentir dores muito fortes no dia 24 de dezembro. Fomos ao hospital e eu estava com um hematoma na placenta. Se o coágulo descesse, poderia atingir o feto. Passei a gravidez inteira de cama. Só andava de cadeira de rodas.
Havia outros tipos de agressão?  Fora essas mais violentas, pequenas coisas aconteciam direto. Eram puxões de cabelo, batidas com o controle remoto na cara e no braço, cascudos na cabeça. Ele também cuspia na minha cara e dizia: “Eu tenho nojo de você”. Isso acontecia frequentemente.

A senhora não tomava nenhuma providência para evitar? Eu achava que ele tinha o direito de fazer isso, estava me achando um lixo, tinha engordado muito depois da gravidez. Ele me levava a acreditar que estava fazendo um favor em ficar comigo. Era tão humilhante que, quando a gente brigava, ele não permitia que eu dormisse na cama. Ele me mandava dormir no closet.

No closet? É. Eu pegava o edredom e ia. Todo mundo na casa sabia, mas eu fingia que ia para o closet para estudar. Ele me humilhava, me xingava. Quando as coisas não saíam da forma que ele queria, vinham as ofensas: “Vagabunda, vaca, cretina”. Ele fazia eu me sentir culpada. Eu realmente me achava culpada.

A senhora contou a alguém?  Contei apenas a uma amiga. O nome dele pesava muito. Ninguém ia acreditar em mim. Um advogado bem-sucedido, hoje juiz de uma corte internacional que zela pelos direitos humanos. Essa era uma das ameaças que eu recebia: “Ninguém vai acreditar em você, porque eu sou o Roberto Caldas, defensor das mulheres, defensor dos direitos humanos, dos empregados. E você não é nada”.

Como a senhora descobriu o assédio sexual contra as empregadas? Uma das babás me procurou e pediu dinheiro para provar que os dois tinham um caso. Eu duvidei e ela mostrou as conversas que mantinha com o Roberto. Era tudo verdade. Vi o nível das mensagens entre os dois. Na minha cabeça, ele jamais teria algo com uma empregada. Depois que surgiu essa primeira revelação, apareceram outras. Uma funcionária veio pedir demissão. Fui direta e perguntei se o Roberto tinha dado em cima dela. Ela confirmou e disse que ele tinha tentando beijá-la. Na sequência, apareceu outra funcionária com depressão, contando uma história muito parecida. Fiz a mesma pergunta. De início ela negou, mas começou a chorar e acabou admitindo. Já soube de cinco casos.

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Quando a senhora decidiu denunciá-lo? Quando ele me agrediu em 23 de outubro do ano passado, depois que ele soube que eu estava conversando com uma das funcionárias sobre assédio. Ele chegou em casa, puxou meu cabelo e desceu me empurrando pela escada. Na sequência, disse que ia pegar uma faca para me matar. Uma cozinheira tentou apartar a confusão. Eu fiquei em estado de choque. Não sabia para onde ia: para a delegacia ou para um cartório. À noite, com medo que eu fosse à delegacia, ele simulou uma reconciliação. No dia seguinte, ele tinha uma palestra em uma faculdade. Lá, falou de violência doméstica, defendeu a tese de que a mulher tem de ter o seu espaço e não pode sofrer agressão. Eu estava na plateia — e cheia de hematomas.

Por que demorou a denunciar? Medo de perder meus filhos, medo de ser desacreditada, medo do poder e da influência que ele tem. Para mim, é uma vergonha tão grande dizer aos outros o que eu sofria, porque as pessoas julgam. Elas falam: ninguém precisa passar por isso. Por que não se separa? Por que não denuncia? É muito fácil falar isso quando você não está dentro da situação.

Com reportagem de Gabriel Castro

Publicado em VEJA de 16 de maio de 2018, edição nº 2582

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