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Saraiva suspende pagamentos e expõe as dificuldades do mercado editorial brasileiro, que ainda não se recuperou dos prejuízos trazidos pela crise econômica

Por Fernando Molica
Atualizado em 4 jun 2024, 17h11 - Publicado em 25 Maio 2018, 06h00

Diante das dificuldades de distribuição da revista decorrentes da greve dos caminhoneiros, VEJA, em respeito aos seus assinantes, está abrindo seu conteúdo integral on-line.

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(Arte/VEJA)

Acostumado a histórias de suspense, imprevistos e reviravoltas, o mercado de livros no Brasil virou protagonista de um enredo desse tipo, que promete novos capítulos antes de chegar a um final, de preferência, feliz. Justo no momento em que esperavam um respiro depois de três anos seguidos de retração, as editoras foram atropeladas pela decisão da maior rede de livrarias do país, a Saraiva, dona de 30% do mercado, de suspender pagamentos e renegociar prazos junto aos fornecedores. A medida se insere em seu plano de recuperação de um prejuízo que bateu em 52 milhões de reais no ano passado. A dívida protelada, que corresponde a livros comercializados de dezembro de 2017 a março último (o arranjo entre editoras e livrarias é de vendas por consignação), chega a 120 milhões de reais. O calote da Saraiva se une à pilha de dificuldades (veja o quadro ao lado) que os livreiros brasileiros vêm enfrentando de 2014 para cá, período em que as vendas derraparam e o faturamento das editoras caiu mais de 20%.

Os resultados da Saraiva no primeiro trimestre indicam um lucro de 1,3 milhão de reais. É modesto, mas intensamente comemorado em um mercado no qual a crise econômica do país abriu um rombo. Em questão de poucos anos, cerca de 600 livrarias encerraram suas atividades, a Laselva quebrou e a francesa Fnac transferiu nome e ativos para a Livraria Cultura e saiu do Brasil. A própria Cultura, a segunda maior, com uma fatia de 10% do mercado, atrasou repasses em 2016 e 2017 e fechou quatro lojas herdadas da Fnac. Aparentemente está pagando em dia, mas também negocia com seus fornecedores prazos maiores e descontos mais generosos. As ondas da crise desaguaram nas distribuidoras: uma das maiores, a BookPartners, está em recuperação judicial. “Minha lista de clientes, entre livrarias e distribuidoras, já tomou três páginas. Hoje, cabe em uma”, lamenta um editor que não quis se identificar para não atrair animosidades do mercado.

O setor teve o primeiro baque em 2014, quando o governo federal, cliente de enorme peso, foi levado pela mesma economia combalida a suspender a compra de obras literárias para escolas e bibliotecas. A partir daí, o mercado despencou prateleira abaixo. Uma agravante sempre citada pelos especialistas no ramo foi a decisão tomada pelas editoras nos tempos de bonança de segurar o preço dos livros, contando que a venda em grande quantidade compensaria o lucro menor por unidade. Resultado: 190 milhões de exemplares vendidos em 2006 renderam 18% mais para as empresas do que 230 milhões comercializados em 2016. Nesses mesmos dez anos, calcula-se que o preço real médio do livro nas editoras caiu de 26 para 17 reais. Desde o ano passado as editoras vêm aumentando os preços, com o propósito de reverter a situação, mas o efeito ainda está longe de repor as perdas e pode até vir a agravá-las, afugentando possíveis compradores.

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Fôlego - Livraria Cultura, em São Paulo, a segunda maior: para diminuir problemas, tenta negociar condições (Léo Burgos/Folhapress)

Para tentarem manter o fôlego em ano de Copa e eleições, dois acontecimentos que desviam atenções da leitura, as editoras aumentaram a dose da receita amarga que já vinha sendo aplicada para saírem do sufoco: adiaram e reduziram lançamentos (o corte chega a 30%), diminuíram contratações de novos livros, limitaram os adiantamentos a autores, produziram tiragens mais modestas e demitiram profissionais. A agente literária Luciana Villas-Boas observa outro efeito dos ventos que sopram contra a literatura: as editoras deixam de arriscar. “Elas só lançam livros que sejam rentáveis, que deem lucro”, afirma. No outro lado do balcão, Sônia Jardim, presidente do grupo editorial Record, argumenta que contas atrasadas emperram investimentos. “Não recebemos, mas temos de pagar royalties aos autores e impostos”, diz.

Nesse contexto de crise, o comércio eletrônico segue crescendo: nos três primeiros meses de 2018, enquanto a receita de livros físicos nas lojas da Saraiva subia apenas 1,4%, a das vendas on-line, mas também de livros físicos, aumentava 32,5% (atualmente, o varejo eletrônico representa 41,8% do faturamento da empresa). O problema é que são vendas movidas a enormes descontos — o método Amazon de fazer amigos e influenciar clientes —, o que corrói o resultado final: o best-seller Origem, de Dan Brown, que custa 49,90 reais nas lojas, era oferecido a 31,90 reais em alguns sites na semana passada. De desconto em desconto, prática que se aliou à facilidade de comprar sem sair do sofá e aos custos menores, o gigante Amazon acabou se tornando um fator decisivo no terremoto que assola o mercado de livros no mundo todo, especialmente nos Estados Unidos. A segunda maior rede de livrarias, a Borders, presente em vários países, simplesmente fechou as portas em 2011. A sobrevivente Barnes & Noble, por sua vez, reduziu o número de lojas de 726 para 633 entre 2012 e 2017, perdeu 1 bilhão de dólares em faturamento, registrou queda de vendas de 6% na temporada de ouro do Natal e, neste ano, já demitiu 1 800 funcionários.

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Ao mesmo tempo em que as grandes redes encolhem, a Associação Americana de Livreiros constatou um fenômeno na direção inversa: as pequenas livrarias independentes estão se disseminando e suas vendas cresceram 2,6% no ano passado. Sempre de prontidão para as idas e vindas do mercado editorial, a Amazon agiu rápido e abriu quinze livrarias físicas nos Estados Unidos, e mais duas estão a caminho — sem falar na Amazon Go, a mercearia totalmente automatizada em Seattle, sua cidade natal. Inaugurada em janeiro, a loja funciona com base em um aplicativo no celular que identifica o produto que o cliente pega (o item campeão é o sanduíche de frango) e debita o respectivo valor ao cartão de crédito registrado, quando detecta que ele saiu da loja.

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Avanço - Loja de rua da Amazon, em Nova York: o gigante do varejo on-line abre livrarias nos EUA para ampliar seu alcance (Spencer Platt/Getty Images)

Ainda no capítulo das livrarias pequenas e personalizadas, a Waterstones, a maior rede da Inglaterra, com 283 unidades, reinventou-se em 2011 quando contratou o executivo James Daunt para dirigi-la. Criador de livrarias independentes, Daunt incentivou cada loja da Waterstones a ter características próprias, com gerentes acessíveis e interessados na clientela e atendentes que gostem de ler e conheçam o produto. A rede saiu do vermelho em 2016. Neste mês, aliás, as quatro maiores editoras britânicas apresentaram bons resultados — a maior, HarperCollins, teve lucro de 6,4%.

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No Brasil, um projeto de lei em tramitação no Senado propõe que livros recém-lançados sejam vendidos com desconto máximo de 10%, uma providência que vigora na Europa e na Argentina. A medida vale para todas as lojas, mas ajuda principalmente as livrarias de rua a enfrentar a concorrência on-line. “Na internet, há livros com preço abaixo do custo, que servem de chamariz para outros produtos”, alerta Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias. Enquanto esse socorro não vem, a Saraiva defende junto às editoras sua proposta de retomar os pagamentos mensais em junho e jogar para outubro o início da quitação da dívida acumulada, em três parcelas — movimentação que a rede de livrarias qualifica de “prática comum no mercado”. Mergulhado em problemas, o mundo editorial celebra uma discreta vitória: nos quatro primeiros meses do ano, as vendas de livros cresceram 9%. Se a economia se firmar de vez e o futebol e a eleição permitirem, é possível que os livreiros possam começar, enfim, a virar a página da crise.

Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584

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