Privatização ameaçada
Venda da Eletrobras foi anunciada por Temer como uma de suas principais medidas econômicas. Mas corre o sério risco de não sair do papel
A notícia de que a Eletrobras seria incluída no Programa Nacional de Desestatização foi festejada e recebida com euforia pelos investidores, em agosto do ano passado. A decisão de privatizar a segunda maior estatal no país, atrás apenas da Petrobras, trazia a esperança de aliviar os ombros dos brasileiros de um grande peso. A Eletrobras está endividada até o pescoço e depende do dinheiro do Tesouro (ou seja, dos impostos pagos pelos contribuintes), e seus negócios foram comprometidos pelo excesso de interferência política. Privatizá-la, como ocorreu com a Vale e a Embraer, significaria recuperar seu valor e ampliar sua capacidade de realizar investimentos. A euforia inicial, entretanto, deu lugar a uma usina de incertezas. O processo de privatização mal começou e enfrenta uma série de obstáculos, entre outros motivos porque existe um contingente graúdo de políticos que não abrem mão de manter influência sobre a estatal.
No pacote da privatização devem entrar algumas das maiores subsidiárias da Eletrobras, entre elas a Chesf, Furnas, a Eletronorte e a Eletrosul. Esse é justamente o grande ponto de resistência ao plano: as bancadas regionais, principalmente as do Nordeste e de Minas Gerais, querem preservar seus feudos no controle da Chesf e de Furnas. Estima-se que mais de 400 deputados e senadores estejam em campanha contra a venda. Tal apego dos congressistas pela estatal travou todo o processo e retardou o cronograma previsto pelo governo de Michel Temer. A ideia original era privatizar a empresa até o primeiro semestre deste ano, mas nenhuma etapa necessária para isso completou-se até agora.
Na semana passada, a primeira instância da Justiça de Pernambuco anulou parte de uma medida provisória (MP) publicada no fim de 2017. O texto permitia que os primeiros estudos para a privatização fossem iniciados. O governo vem tentando derrubar a decisão judicial, mas até o momento não teve sucesso. Mesmo que a MP siga adiante, há uma série de outras barreiras. Decisões dos governos anteriores criaram imbróglios que precisam ser desarmados antes de a venda ser concretizada. Um exemplo é a situação das distribuidoras de energia do Norte e do Nordeste. Tais empresas eram administradas pelos governadores, e passaram por toda sorte de imprudência financeira até se endividarem o suficiente para ir à bancarrota. A Eletrobras foi obrigada a assumir essas companhias quebradas e absorveu 11 bilhões de reais de dívidas. Há, ainda, o risco de entrarem na conta outros 8,5 bilhões de dívida, resultantes de uma investigação sobre desvios nos valores pagos por combustíveis em termelétricas. A Eletrobras bateu o pé e disse que não assumirá esse mico. Os acionistas minoritários tentaram empurrar a responsabilidade para o Tesouro. O Ministério da Fazenda jogou a bola de volta e disse que não vai absorver a conta. E a questão, nesse jogo de empurra, segue sem definição.
Outro exemplo de erro de gestão é uma MP publicada em 2013, pela então presidente Dilma Rousseff, que obrigou as geradoras de energia a antecipar a renovação dos contratos, aceitando uma remuneração muito mais baixa que a praticada no mercado. Foi a maneira que Dilma encontrou para dar uma pedalada na lógica econômica e baratear a conta de luz. A manipulação serviu apenas para desequilibrar as contas das companhias. Todas as geradoras foram à Justiça contestar o plano e pedir indenização, exceto a Eletrobras. O resultado foi um rombo acumulado de 30 bilhões de reais nos cofres da estatal. Como o governo é o maior acionista da empresa, a perda foi absorvida, mais uma vez, pelos contribuintes.
Para reparar todos esses desequilíbrios e retirar os esqueletos dos armários, será necessário enviar um projeto de lei ao Congresso. O texto ainda está na Casa Civil, porque o governo não consegue conciliar as suas intenções com os interesses dos parlamentares. Aprovar esse projeto em ano eleitoral parece ainda mais complicado que votar a reforma da Previdência. “A chance de privatização diminui a cada dia, e, diante do tempo necessário para concluir todo o rito de votação no Senado e na Câmara, é improvável que o processo seja concluído em 2018”, prevê Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Se a venda não vingar, será uma nova dor de cabeça para o governo, que conta com a privatização para reforçar o seu caixa com 11 bilhões de reais.
Ainda com destino incerto, a Eletrobras vem passando por ajustes, comandados pelo executivo Wilson Ferreira Júnior. O quadro de funcionários diminuiu, e assessores tão caros quanto inúteis foram dispensados. Mas, se a privatização não for adiante, o enxugamento de custos, por si só, não será capaz de resgatar a saúde financeira da empresa. A Eletrobras deixou de ser uma companhia à beira do colapso, como era até poucos meses atrás, mas está sem caixa para executar investimentos. Ainda depende de recursos do Tesouro e não consegue caminhar com as próprias pernas. “A companhia tem potencial, mas, para cumprir sua missão, ela precisa de dinheiro”, afirma Ferreira Jr. “Se não a privatizarmos, deixaremos de resolver um obstáculo ao desenvolvimento do país”, completa ele. Como a Eletrobras é a maior empresa em sua área de atuação, todo o setor fica para trás. A qualidade do serviço oferecido diminui e o preço sobe. Mais uma vez, a conta fica com o consumidor.
O custo da ingerência política
Assim como a Petrobras, a estatal Eletrobras era uma empresa à beira do colapso até pouco tempo atrás, apesar de ser a maior companhia de energia elétrica da América Latina. Corroída pelo uso político, sobreviveu nos últimos anos à base de dinheiro público. Sua reestruturação foi confiada a um dos executivos mais tarimbados do setor, o engenheiro elétrico Wilson Ferreira Júnior, de 58 anos. Em conversa com VEJA, ele falou sobre as ineficiências que sangraram a estatal.
A empresa acumulava quatro anos consecutivos de prejuízo. Havia o risco de falência? O que mais me impressionou foi o endividamento. Eu nunca tinha visto uma empresa que funcionasse com uma dívida equivalente a nove vezes sua geração de caixa. Nosso plano desde o início esteve focado na redução da dívida, e para isso estava claro que seria necessário vender ativos. Isso sempre esteve ao alcance da Eletrobras, mas ela não o fez, talvez pelo tabu que o tema representa.
A Eletrobras possui subsidiárias que controlam a distribuição de energia no Norte e no Nordeste. Essas empresas acumulam dívidas bilionárias. Serão vendidas? Temos as distribuidoras com as maiores perdas de energia e com as maiores interrupções no fornecimento aos consumidores. O nível de qualidade é muito baixo. Pusemos as seis distribuidoras em processo de privatização.
O processo de reestruturação prevê o corte de até 10 000 funcionários. A estrutura estava inchada? Temos gente demais: 24 000 empregados no total. Se compararmos o que eu chamo de “chão de fábrica” (aqueles que sobem no poste de luz, operam subestação e usinas, fazem manutenção) com o número de pessoas das áreas corporativas (escritório, contabilidade, recursos humanos), chegamos a uma proporção de meio a meio. As empresas eficientes não têm mais do que 20% de seus funcionários em atividades corporativas. Tínhamos assessores para presidente, diretores, superintendentes e chefes de departamento. Cortamos em 63% o número de assessores. Com a venda de subsidiárias e a redução de pessoal, o número de funcionários deverá cair pela metade, para 12 000. Mais de 1 000 pessoas na Eletrobras têm um salário maior do que o meu, e eu sou o presidente da empresa. Há funcionários que ganham quase o dobro.
Ainda são comuns as nomeações políticas? O controlador é o Estado, e cabe a ele fazer indicações para posições importantes — eu sou uma indicação do ministro. Mas antes não havia regras claras, agora há. Hoje temos um comitê que avalia o currículo dos indicados. A cada cinco, um é barrado.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566