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Precisamos de eremitas

A introspecção está fora de moda, mas é essencial à literatura

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00

A misantropia literária é um vício antigo e de estirpe respeitável. Consta que Heráclito, o grego, tenha sido um de seus primeiros cultivadores; o romancista J.D. Salinger, trânsfuga do estrelato, talvez seja o mais célebre; já a poe­ta Emily Dickinson, que passou vinte anos burilando versos sem sair da chácara familiar, foi quem mais se aproximou ao que poderíamos chamar o ideal platônico da reclusão. Ao contrário de outros vícios outrora associados à vida literária, esse parece ter perdido parte de seu glamour e mesmo sua verossimilhança: na era da autopromoção, a busca de visibilidade instantânea ameaça tornar-se uma segunda natureza, uma perícia sine qua non a quem alimente quimeras letradas. Haverá, em algum lugar por aí, um Marcel Proust encerrado num quarto, com paredes forradas de cortiça, escrevendo sua obra-prima na sombra e no silêncio, sem selfies, sem textões? Talvez haja; mas como vamos descobri-lo? A boa prosa se tornou um elemento insuficiente, um elemento — digamos — prosaico; o Espírito do Tempo, que aprecia o barulho e a dispersão, não parece mais sorrir aos ascetas do ofício; e as portas da Fama se abrem mais facilmente aos loquazes do que aos livrescos.

Não me entendam mal: nada tenho contra a loquacidade, que, aliás, pode ser uma manifestação colateral, quase um transbordamento do estilo. Tampouco acho que a exposição pública seja coisa indigna de um circunspeto herdeiro de Homero. O escritor-espetáculo não surgiu com a internet e também conta com linhagem venerável: seu maior exemplar, creio eu, foi Dickens. Preocupa-me, contudo, que estejamos assistindo ao desgaste de certa contradição essencial ao ofício da escrita: o duelo, necessariamente encarniçado e criativo, entre a introspecção e a vaidade. A primeira se volta ao abismo profundo de nós mesmos e ali se compraz; a segunda deve se propagar em círculos concêntricos, a partir da solidão nuclear de quem escreve. Ambas são necessárias e saudáveis; a tensão entre elas dá vida às palavras. “Escrever é estar no extremo de si mesmo”, diz-nos João Cabral de Melo Neto; o fascinante é que, desse ventoso promontório, se possa olhar com idêntica intensidade para dentro e para fora. A escrita é uma dança entre as forças centrípeta e centrífuga na alma humana; mas hoje a força centrífuga predomina.

Eis o que nos diz o Espírito do Tempo: a literatura perdeu o direito à introspecção; burilar uma persona pública é mais importante que construir uma obra idiossincrática e às vezes secreta. Mas por que deve­ría­mos nos curvar sempre à vontade desse tal Zeitgeist? O caráter ferozmente pessoal da grande empreitada literária demanda que flertemos, ao menos de vez em quando, com “a proeza solitária de uma Vida em Silêncio” — como escreveu Emily Dickinson. Há certa sabedoria estética em aceitar a possibilidade do anonimato e abraçar — tal qual Próspero perante Calibã — as trevas do esquecimento.

Em uma época obcecada pela tirania da extroversão, os verdadeiros rebeldes são os eremitas.

Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546

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