Pop começa com K
Os jovens brasileiros mergulham no K-pop, um movimento embalado por música, moda e séries de TV feito para espalhar a cultura da Coreia do Sul pelo mundo
De calças rasgadas e justas, casacos coloridos e cabelos perfeitamente despenteados, sete jovens na casa dos 20 anos sobem ao palco. Dançam em movimentos sincronizados, numa coreografia enérgica e ultraensaiada que bebe da fonte do hip-hop, enquanto cantam em inglês canções melosas de refrão-chiclete: “Eu estou tão cansado desse / Amor falso, amor falso, amor falso / Eu sinto muito, mas é um / Amor falso, amor falso, amor falso”. A plateia enlouquece. Meninas adolescentes pulam e gritam os nomes dos integrantes (cada um deles encarna um personagem — o “líder”, o “bonito”, o “caçula”). O grupo se chama BTS e aquela apresentação em Las Vegas, em maio, teve um gostinho especial: os meninos da Coreia do Sul ganharam o prêmio máximo do público no célebre Billboard Music Awards, desbancando artistas como Justin Bieber e Ariana Grande. Além de comprovar o sucesso da banda, criada em 2013, o troféu foi a consagração do K-pop — estilo de música e de comportamento minuciosamente desenvolvido pela indústria e pelo governo coreano com o intuito, já largamente alcançado, de ganhar o mundo. O Brasil também se rendeu.
Na primeira vez em que o BTS se apresentou no país, em 2014, reuniu minguados 1 500 fãs. Na terceira, em 2017, 14 000 jovens cantaram e dançaram suas coreografias em São Paulo — enquanto 30 000 amargavam a fila de espera na venda de ingressos on-line. Só a recepção ao grupo no Aeroporto de Guarulhos juntou 8 000 fãs ensandecidos. Atualmente, no Rio de Janeiro, dezenas de grupos cover de K-pop se reúnem toda semana na Zona Norte. Alguns chegam a cobrar 5 000 reais para apresentar-se em festas de debutantes. No ano passado, quando o Centro Cultural Coreano convidou fãs interessados em fazer teste com uma das principais agências de talentos de Seul, 6 000 brasileiros compareceram.
O K-pop é apenas a ponta mais visível de um fenômeno batizado de Hallyu (pronuncia-se ráliu). Em uma tradução livre, significa “onda coreana” — produto de um esforço concentrado da iniciativa privada e do governo para fincar a marca da Coreia na moda, na gastronomia, em séries de televisão e até no vocabulário de outras nações. Em 2005, o governo daquele país canalizou 1 bilhão de dólares para patrocínios culturais. “O sucesso do K-pop não é acidente. É fruto de publicidade e de uma gestão inovadora de talentos”, afirma o compositor coreano Won Yong-Oh. Um dos mais bem-sucedidos exemplos de investimento em soft power, a força que não vem das armas, o Hallyu ajudou a Coreia a acumular não apenas divisas (só no ano passado o negócio das bandas movimentou 4,7 bilhões de dólares) como também prestígio. Ser coreano passou a ser cool. Nada mau para uma comunidade cujos integrantes, nos Estados Unidos, eram até pouco tempo atrás conhecidos pelo jocoso apelido de “kimchi” — o prato nacional de cheiro forte, à base de repolho fermentado.
Hoje, o canal do BTS no YouTube tem 10 milhões de inscritos e os vídeos acumulam 1,5 bilhão de visualizações. A também coreana banda feminina BlackPink vai ainda mais longe: tem 2,4 bilhões de views. Isso sem falar no recordista, o rapper Psy, o primeiro fenômeno global da onda: seu hit Gangnam Style, de 2012, atingiu 3,1 bilhões de visualizações. Por trás do sucesso das bandas de K-pop estão os gigantes SM, YG e JYP, três fábricas de grupos musicais. “A indústria de criação de ídolos parece uma linha de montagem”, compara a pesquisadora Daniele Mazur, da Universidade Federal Fluminense, especialista em cultura coreana. Essas empresas recebem 300 000 inscrições de adolescentes por ano em seus programas de treinamento. Os candidatos selecionados fazem um curso de até três anos e saem com banda formada, contrato e patrocinador.
Por causa do K-pop, a Coreia do Sul é um dos últimos lugares do mundo desenvolvido em que ainda se compram e vendem CDs. “Para os fãs, adquirir um álbum é uma experiência bem diferente da de consumir as músicas por streaming”, diz Pedro Pereira. Autor do livro O Melhor Guia de K-pop Real Oficial, a primeira obra brasileira sobre o tema, ele explica que cada CD produzido por essas bandas sai em diferentes versões e traz na embalagem pôsteres exclusivos e sortidos de seus integrantes, que depois são trocados entre os fãs. Dessa forma, os grupos conseguem a proeza de vender mais de 1 milhão de cópias de suas obras, mesmo que todas as músicas estejam nas plataformas de streaming. “Às vezes, o lançamento funciona mais ou menos como o dos filmes de super-heróis. Os clipes são apresentados aos poucos, cada um com um integrante. No fim, lançam o grupo completo. Fica todo mundo na maior expectativa”, diz Pereira.
O guarda-roupa do K-popper, como a turma é chamada, é composto de saia plissada curta para as meninas e calça bem justa para os meninos, moletom esportivo e camiseta estampada. A pele do rosto das garotas é a mais clara e imaculada possível. A maquiagem dos olhos inclui delineador reto e lentes de contato para ampliar as pupilas — cópia dos desenhos orientais. Na boca, batom só no centro dos lábios. A publicitária Larissa Lair, 24 anos, fez um mês de intercâmbio em Seul. “Voltei cheia de cremes para a pele. São o melhor do ulzzang”, diz, usando a palavra coreana para “rosto bonito” (ver o glossário ao lado). Muitos fãs passaram a aprender coreano. Nas salas de aula do Centro Cultural paulistano estudam 400 alunos e outros 600 aguardam vaga. A World Study, agência especializada em intercâmbios, viu a demanda por viagens para a Coreia triplicar em seis meses.
Surfando na mesma onda, o catálogo da Netflix no Brasil conta com mais de oitenta doramas — como são chamadas as séries e novelas coreanas. “Os enredos são bem água com açúcar e acho que é isso que atrai o público”, explica Daniele. A estudante de arquitetura Thais Midori, 23 anos, morou um ano na Coreia, em 2016. Já voltou várias vezes e hoje é a maior youtuber brasileira de temática K-pop. Para quem ainda não aprendeu a reconhecer os entusiastas do movimento, fica a dica: viu algum cabelo pintado de azul ou rosa por aí?
Com reportagem de Bruna Motta
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592