Pego na malandragem?
Se ficar provado que recibos de aluguel entregues por Lula a Moro foram forjados, o petista poderá ser novamente acusado de obstruir a Justiça
“O senhor ex-presidente tem recibos do pagamento desses aluguéis?”, perguntou Sergio Moro a Lula no depoimento que o ex-presidente concedeu em 13 de setembro. “Devo ter recibo, deve ter”, respondeu Lula, aparentando indiferença. O magistrado se referia aos documentos que reforçariam a tese da defesa do petista de que sua família pagou regularmente pelo aluguel de um apartamento em São Bernardo do Campo (SP) vizinho ao que ele habita. O imóvel é objeto de uma controvérsia. O Ministério Público Federal sustenta que o apartamento é parte de um pacote de propinas dado ao petista pela Odebrecht em troca de favorecimentos à empreiteira. No depoimento, Moro lembrou a Lula que, “salvo engano desse juízo”, os recibos já haviam sido pedidos fazia algum tempo e nunca tinham sido apresentados. Lula ficou de providenciá-los.
Na semana passada, os recibos finalmente apareceram — com datas inexistentes no calendário, erros grotescos de digitação e outros indícios que levantam suspeitas de fraude. Um dos recibos traz a data de 31 de junho de 2014; outro, de 31 de novembro de 2015. Outros ainda foram “assinados” em dias que caem em fim de semana e seis trazem o mesmo erro de grafia no nome da cidade de São Bernardo (“Bernanrdo”) do Campo. São detalhes que denotam pressa e elaboração em escala — duas situações que de fato ocorreram, segundo denuncia um dos personagens-chave da história.
Três indícios sugerem que recibos foram forjados
O empresário Glaucos da Costamarques, oficialmente proprietário do apartamento em questão, disse em depoimento ao juiz Moro no início deste mês que havia comprado o apartamento ao lado do de Lula por 504 000 reais a pedido de seu primo José Carlos Bumlai, amigão do petista e, como ele, réu na Lava-Jato. Afirmou que levou “calote” de Lula durante quatro anos e que só começou a receber o aluguel em novembro de 2015 — quando Bumlai foi preso e a Lava-Jato passou a morder os calcanhares do ex-presidente. Os procuradores acreditam que Costamarques fala parcialmente a verdade — e que agiu como laranja da Odebrecht, a real compradora do apartamento. Agora, com a apresentação pela defesa de Lula de recibos com a assinatura de Costamarques, tornou-se inevitável a constatação de que ou o empresário mentiu ou o ex-presidente mentiu. João Mestieri, advogado de Costamarques, afirmou a VEJA que seu cliente não mentiu. “Os recibos não provam o recebimento do dinheiro”, disse.
Segundo o advogado, em novembro de 2015, quando Costamarques estava internado no Sírio-Libanês para a colocação de um stent, Roberto Teixeira, advogado de Lula e réu na Lava-Jato, e o contador João Muniz Leite foram até seu leito e pediram-lhe que assinasse um calhamaço de documentos. “Ele assinou sem saber muito bem o que estava fazendo. Estava numa cama de hospital, e os valores não eram muito altos”, afirmou Mestieri. Entre os documentos estariam os tais recibos de aluguel do apartamento apresentados agora pela defesa do petista. Costamarques diz ter assinado 26 recibos de aluguel de uma só vez, mesmo não tendo visto a cor do dinheiro no período indicado nos documentos.
O advogado do empresário disse que pedirá ao juiz Sergio Moro que solicite imagens das câmeras de segurança do hospital que comprovariam a visita do contador e de Teixeira ao seu cliente. O Ministério Público Federal (MPF) quer fazer uma perícia dos recibos. Testes que calculam o envelhecimento do papel e o tempo de pigmentação da tinta poderiam confirmar se os comprovantes foram produzidos e assinados todos de uma só vez. Se atestada a fraude, Lula poderá ser novamente acusado de obstrução da Justiça — ele já foi alvo de denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) por esse crime no início de setembro.
A história mal contada dos recibos de Lula foi apenas um dos duros golpes sofridos pelo PT ao longo da semana. Na terça-feira, em uma carta de três páginas enviada à presidente do partido, Gleisi Hoffmann, o ex-ministro e ex-grão-petista Antonio Palocci, usando palavras duríssimas, pediu sua desfiliação da sigla, que comparou a uma seita — tomada pelo “desmonte moral” de seus líderes.
Como para ilustrar a fala de Palocci, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) acrescentou dez anos à pena de vinte anos de prisão que havia sido imposta ao ex-ministro José Dirceu pelo juiz Sergio Moro. A condenação refere-se à acusação de que o ex-ministro embolsou 15 milhões de reais de propina da Engevix por meio de contratos superfaturados da Petrobras. Dirceu responde ainda a outros dois processos na Lava-Jato. Em um, que aguarda julgamento em segunda instância, ele já foi condenado a onze anos.
Com isso, a segunda mais severa sentença dada pelo TRF-4 no âmbito da Lava-Jato coube a Dirceu (a primeira é de Renato Duque: 43 anos), o homem que já foi a segunda estrela do PT, o capitão do time, o provável sucessor de Lula — que, por sua vez, nas palavras de Palocci, “dissociou-se definitivamente do menino retirante para navegar no terreno pantanoso do sucesso sem crítica, do ‘tudo pode’, do poder sem limites”. Com a condenação de Dirceu, as suspeitas de mutretas de Lula e a devastadora carta de Palocci, a semana que passou entrará para as páginas negras do PT — ou do que terá restado dele.
FORA DA “SEITA”
A carta que o ex-ministro Antonio Palocci escreveu à presidência do PT foi um movimento estratégico destinado a atingir dois objetivos: tornar irreversível a assinatura de seu acordo de delação, em fase final, com a Procuradoria-Geral da República, e evitar uma expulsão humilhante do partido que ajudou a fundar — o pedido de desfiliação que encerra o texto deixa claro que ele não foi expelido, pediu para sair. Mas, para além dos objetivos pessoais, o ex-ministro usou da sagacidade que fez dele um dos ministros mais poderosos da era petista para lograr resultados de alcance mais amplo: escancarou a hipocrisia reinante no partido (“Enquanto os fatos me eram imputados e eu me mantive calado, não se cogitava a minha expulsão. Agora que resolvo mudar a minha linha de defesa e falar a verdade, me vejo diante de um tribunal inquisitorial dentro do próprio PT”), desnudou seu líder perene (“Até quando vamos fingir acreditar na autoproclamação do homem mais honesto do país?”) e descreveu como o viu “sucumbir ao pior da política”.
Em duas passagens, trouxe informações novas: a de que Dilma Rousseff e José Sergio Gabrielli se mostraram perplexos durante a reunião na biblioteca do Alvorada em que Lula encomendou as sondas do pré-sal e a propina para a eleição de 2010 (“no mesmo tom, sem cerimônia, na cena mais chocante que presenciei do desmonte moral da mais expressiva liderança popular do país”) e a de que João Vaccari Neto havia proposto que o PT pleiteasse um “acordo de leniência”. Com o seu pronunciamento, Palocci investiu-se do papel de portador da pá de cal que soterra qualquer esperança de o PT, como existe hoje, reerguer-se. “Depurar o partido será tarefa para os mais jovens. Minha geração talvez tenha errado mais do que acertado.”
Como um dos autores da Carta ao Povo Brasileiro, Palocci foi um dos grandes responsáveis pela ascensão do PT ao poder. Agora, com sua segunda carta histórica, esse ex-trotskista proclama o seu fim.
Com reportagem de Ullisses Campbell
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2017, edição nº2550