Para o lado errado
Os europeus são aliados dos americanos. Os russos, inimigos. O difícil é explicar isso ao presidente Donald Trump
O presidente Donald Trump com frequência contradiz a si mesmo em tuítes e declarações. Jogo jogado. O curioso é que há momentos em que seus gestos revelam certa lógica. Com relação aos inimigos históricos dos Estados Unidos, Trump cultiva um profundo desejo de encontrá-los pessoalmente para acertar as coisas. Ele já esteve com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, e estará com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Helsinque, na Finlândia. Com relação aos aliados tradicionais, no entanto, principalmente os europeus, Trump solta faíscas o tempo todo. Na viagem que começou em Bruxelas — em uma reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na quarta 11 —, passará por Londres e terminará na segunda 16, em um evento com Putin, essas duas posturas conflitantes estarão em ação. “Tenho a Otan, a Inglaterra, que passa por certa turbulência, e tenho Putin. Francamente, Putin será a mais fácil de todas: quem diria?”, disse Trump antes de embarcar.
Às vésperas da viagem para a Europa, Trump fez diversos ataques contra a Otan, criada após a II Guerra Mundial para conter a ameaça representada pela União Soviética. Ele já afirmou que a instituição precisa mudar, uma vez que a URSS não existe mais. Seus petardos recentes concentram-se na questão financeira. Trump cobra dos países europeus que cumpram um acordo de 2014. Nele, os 29 países-membros se comprometeram em gastar, no mínimo, 2% de seu PIB com despesas militares em dez anos. Só que, além dos Estados Unidos, apenas Grécia, Inglaterra e Estônia alcançaram a meta. Em Bruxelas, sede da Otan, ele chegou a mencionar que o objetivo deveria ser ainda maior: 4%. “Trump é mais sensível e incisivo nos aspectos econômicos do que presidentes americanos anteriores. Na visão dele, é como se os EUA estivessem carregando os europeus nas costas”, diz Mark Cancian, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington.
Trump tem certa razão em cobrar mais gastos bélicos dos europeus. Putin vem se aproveitando desse descaso para exercer livremente seus pendores autoritários. Na declaração oficial da Otan, o grupo lista uma série de malcriações russas, como a anexação da Crimeia, na Ucrânia, em 2014, a instalação de um sistema de mísseis em Kaliningrado, próximo à fronteira com a Polônia, a presença de soldados russos na Moldávia (entre a Ucrânia e a Romênia), violações ao espaço aéreo da aliança militar, tentativas de interferências em eleições e o uso de agentes químicos, como o novichok, para envenenar desafetos em território inglês. “O problema é que palavras não são suficientes para impressionar Putin. É preciso demonstrar capacidade militar, o que requer gastos”, diz o cientista político romeno Aurel Braun, da Universidade de Toronto, no Canadá. Sem investimentos, a Otan perde a capacidade de responder a uma eventual invasão ou ataque. Somente quatro dos 128 caças Eurofighter da Alemanha estão prontos para o combate. Apenas dois de seus seis submarinos trabalham. Dos 250 tanques, só 95 estão operacionais. “A taxa de prontidão das forças alemãs é horrível. Para consertar isso, será preciso compromisso e dinheiro”, diz Alexander Crowther, especialista em Otan da Universidade de Defesa Nacional, nos Estados Unidos.
No encontro da aliança militar, Trump comportou-se como se fosse um rebelde que chegou para causar confusão. É uma atitude calculada e da qual ele se gaba. Após se reunir com o secretário-geral do organismo, Jens Stoltenberg, o americano disse que o norueguês gostava dele. Depois, emendou: “Ele deve ser o único, mas assim está bem para mim”. No papo com Putin, na segunda 16, teme-se que Trump tome iniciativas que prejudiquem os aliados europeus. Apesar de ter assinado o documento da Otan, Trump afirmou, há duas semanas, que poderia pensar melhor a respeito da anexação da Crimeia. Entre as possibilidades está a de que ele prometa abrandar as sanções econômicas contra a Rússia ou decida reduzir a presença militar americana no continente europeu. A sorte é que essas ações teriam alcance limitado. “Trump não tem o poder de dar ordens às forças militares da aliança, mas poderia retirar as tropas americanas”, diz o historiador canadense Andrew Johnston, da Universidade Carleton, no Canadá. “Decisões unilaterais em instituições multilaterais não são boas, e podem pressagiar o colapso da organização.”
Para Putin, o encontro será um prato feito de estrogonofe. “Ao agendar a reunião a dois, Trump deu a Putin o status internacional que este almeja. É como se o americano estivesse dizendo que, apesar da Crimeia e da participação russa na Síria, eles falam de igual para igual”, afirma a cientista política Carol Saivetz, especialista em Rússia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A foto dos dois, lado a lado, será usada por Putin principalmente para mandar mensagens aos russos. Putin ainda poderá se valer disso para dizer ao seu povo que as sanções econômicas impostas ao seu país não fazem sentido. “Esse encontro será explorado ao máximo por Putin, que aproveitará para dizer que a Rússia tem cumprido positivamente o seu papel global”, diz Stephen Blank, especialista em política russa do Conselho de Política Externa Americana. Trump pode estar certo em cobrar mais ação da Otan. O que não pode é deixar Putin mais forte do que já está.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591