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Os órfãos do mito

Ao tratar da decisão do STF, imprensa internacional bate na tecla das “conquistas” dos governos de Lula e espanta-se com a queda do ídolo da esquerda

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h52 - Publicado em 7 abr 2018, 06h00

Algumas pessoas acreditam que Donald Trump é um Lula com o sinal ideológico invertido. Estão erradas. O tom fanfarrão, a falta de cerimônia, o discurso populista e a turbulenta divisão de águas na sociedade podem induzir a esse erro. Mas nem de longe o condenado foi tratado pela imprensa e pelos antilulistas, no Brasil, com a virulência incessantemente dedicada ao presidente americano.

Como comparar a capa de VEJA em que Lula tinha a marca de uma sola de bota suja de petróleo na região dorsal, quando a Bolívia encampou uma refinaria à Petrobras, à capa da revista New York com um enorme nariz de porco plantado num close de Trump? Também não dá para comparar as reportagens exclusivas de VEJA, e outros furos da imprensa nacional, expondo informações com origem comprovada, gravações, delações, inquéritos policiais, fotos e outras marcas de corrupção ao que saiu na New York à guisa de denúncia: “Lobistas estão plantados em todos os órgãos públicos, ‘regulando’ seus e­­x-empregadores e criando mecanismos que favorecem patrões em detrimento de empregados e empresários em detrimento de consumidores”. Os paralelos são evidentes, mas ainda falta um chão imenso para aparecer uma “Petrobras americana” — a única registrada, até hoje, nos Estados Unidos era brasileira.

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RESSALVAS “Brasileiros ainda têm grande afeição por Lula, apesar da condenação por corrupção”, diz o ‘Guardian’. Prisão “modifica o cenário político próximo à eleição presidencial”, avaliou o ‘Washington Post’ (Arte/VEJA)

A animosidade provocada por Trump, exacerbada por seu estilo caótico, e a cobertura agressiva da imprensa preparam os americanos praticamente todos os dias para o desastre. Ele está sempre para ser enquadrado, impichado, derrubado ou flagrado com uma atriz pornô ou ex-modelo da Playboy. Se não for, vai desencadear uma guerra comercial, uma guerra nuclear ou uma hecatombe social. Pouca coisa prepara para uma possibilidade mais instigante: e se Trump der certo?

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Análises - O francês ‘Le Monde’: “Partido dos Trabalhadores brasileiro órfão de seu herói”. O argentino ‘La Nacion’ comenta “a mais dura queda de um mito da esquerda da América Latina”. O ‘El País’ fala em encarceramento de “obsessão nacional” (Arte/VEJA)
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O fato de que mais de 80% do superávit comercial em mercadorias da China procede das exportações para os Estados Unidos talvez seja um instrumento importante de pressão para os americanos. Um Kim Jong-un mais calminho ultimamente talvez revele que alguma parte da tática trumpiana para a Coreia do Norte está funcionando. O crescimento de 2,9% do PIB americano no último trimestre de 2017 talvez pese junto à opinião pública.

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Atrás das grades - O ”New York Times’ e a revista alemã ‘Der Spiegel’ noticiaram a ordem de prisão. O venezuelano ‘LaPatilla’ diz que Lula vai para cela especial (Arte/VEJA)

Com sua capacidade de criar neologismos perfeitos para novas situações, os americanos inventaram uma palavra para definir a crescente falta de freios nas discussões políticas: weaponization. O mais perto que podemos chegar, como tradução, é prolixo: a transformação do debate político em arma. Ou, num avanço mais liberal, a nuclearização da política.

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(Arte/VEJA)

Não existe leitor que não esteja farto de ser ensinado a ser um bom sujeito, moderado respeitador das regras, rápido e responsável na identificação das fake news. Poucos entendem que: 1) o debate político não vai ser desnuclearizado na base dos bons conselhos; 2) muitos sabem que a notícia é fake, e a divulgam exatamente por isso; e 3) propagá-la pode ser uma espécie de revanche contra os excessos politicamente corretos da imprensa. Por exemplo, se Trump der certo, nem que seja pelas próximas 24 horas, em quem a opinião pública tenderá a acreditar?

Na reunião de 2009 do G20, grupo dos países mais ricos e influentes do mundo, o então presidente americano Barack Obama disse que Lula era “o cara” e explicou: “É o político mais popular da Terra”. Lula aparecia entre os possíveis candidatos a ganhar o Nobel da Paz. Tinha autoridade para falar sobre o combate à fome no mundo, o programa nuclear iraniano ou sobre como conquistar a paz no Oriente Médio. Políticos de esquerda nos Estados Unidos e na Europa o viam como um caso paradigmático de líder que tirou milhões de pessoas da pobreza com programas sociais e crescimento econômico. Na América Latina, Lula ajudou a dar legitimidade ao venezuelano Hugo Chávez, que ganhou influência em toda a região impulsionado pelo valor alto dos barris de petróleo. Mais tarde, enquanto Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, se associaram ao fracasso e à opressão da ditadura, Lula firmou-se como um exemplo de sucesso sem desdenhar da democracia.

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Os órfãos do mito
Baixo quórum - Acima, manifestação a favor de Lula e contra o juiz Sergio Moro em Nova York, em março. No Twitter, ao lado, apenas os presidentes e ex-presidentes mais próximos do brasileiro opinaram sobre a decisão do STF. O uruguaio Pepe Mujica condenou as classes dominantes e disse que a briga continua contra os juízes e a imprensa. O venezuelano Nicolás Maduro afirmou que a injustiça dói na alma. Mauricio Funes, de El Salvador, disse que o sistema judicial brasileiro é controlado pela “elite oligárquica”. O boliviano Evo Morales declarou que o objetivo é impedir que Lula seja presidente e que “a direita não o perdoa por ter tirado 30 milhões de pobres da miséria” (Alcir da Silva/.)

As reportagens publicadas pela imprensa internacional após a decisão do Supremo Tribunal Federal permitem constatar que o mito criado em torno de Lula não foi apagado. Muitos dos textos trazem um parágrafo curto falando de “conquistas sociais” em seu governo. No inglês The Guardian, uma manchete vem acompanhada do subtítulo dizendo que “dezenas de milhões de pessoas foram beneficiadas por suas políticas de habitação, educação e de família”. Segundo o New York Times, os treze anos de governo do PT foram um período ímpar. “A economia do Brasil cresceu, milhões de pessoas entraram na classe média e o país entrou no palco mundial”, diz o texto. No parágrafo seguinte, a notícia traz outra constatação. “Mas enormes escândalos de corrupção e a pior crise econômica em décadas deixaram Dilma Rousseff e seu partido abalados, com pouco apoio para evitar a busca pelo poder de seus rivais políticos.” Assim, se o impeachment de Dilma Rousseff pouco afetou a imagem de Lula no exterior, a visão da cadeia faz aflorar uma narrativa que vinha sendo ignorada ou negada: a do enriquecimento ilícito, concretizada no seu apartamento na praia, e de outras práticas corruptas.

Fora do Brasil, os seguidores e admiradores do ex-presidente perderam seu herói. O francês Le Monde, de esquerda, sentenciou que o PT ficou órfão. O argentino La Nacion comentou a perda do mito da esquerda na América Latina. Para o jornal argentino Página 12, kirchnerista e de oposição ao governo de Mauricio Macri, “não houve crime, nem provas, nem habeas-corpus”. No Twitter, apenas os presidentes e ex-presidentes da região mais próximos de Lula comentaram a decisão do STF. Eles culparam as classes dominantes, as elites, a oligarquia e a direita pela decisão. Um dos que adotaram essa narrativa foi Mauricio Funes, que governou El Salvador entre 2009 e 2014. Pudera. A Odebrecht o ajudou em sua campanha, comandada pelo marqueteiro João Santana, preso na Lava-Jato. Condenado por enriquecimento ilícito, Funes exilou-se na Nicarágua (veja a reportagem). Mas o apoio a Lula parou no Caribe. Líderes mundiais do México, dos Estados Unidos, da Europa e do resto do mundo ignoraram o assunto. Para a maioria, Lula não é mais “o cara”.

Publicado em VEJA de 11 de abril de 2018, edição nº 2577

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