O veneno de Putin
Um ex-espião russo e sua filha são contaminados em Salisbury com uma substância desenvolvida pela ex-União Soviética. Mas a Inglaterra pouco pode fazer
Na exótica corte dos Romanov, a família imperial que comandou a Rússia durante 300 anos, aconteciam festas em que os súditos eram obrigados a ingerir quantidades industriais de vodca — e, em alguns casos, houve até mortos por excesso de álcool. Era, por assim dizer, um envenenamento em público. Na Rússia de hoje, ninguém é obrigado a suicidar-se com bebida, mas, se algum cidadão, sobretudo no submundo da espionagem, não dançar no ritmo da música, o risco de morrer envenenado é do tamanho dos gigantescos cálices oferecidos nas esbórnias de Pedro e Catarina nos séculos XVII e XVIII.
Em 4 de março, Sergei Skripal, ex-coronel do serviço secreto militar da Rússia, e sua filha Yulia foram encontrados desmaiados em um banco de praça em Salisbury, na Inglaterra, depois do almoço. Ela espumava pela boca e seus olhos estavam abertos e brancos. Socorridos por um policial, os dois foram levados para um hospital e seguiam em estado grave até a quinta-feira 15. A perícia revelou que foram contaminados pelo veneno Novichok, desenvolvido pela então União Soviética entre as décadas de 70 e 80. Outras 34 pessoas que estavam nos arredores chegaram a ser atendidas por suspeita de envenenamento e depois foram liberadas.
Skripal foi condenado a treze anos de prisão em Moscou em 2006 por ter revelado a identidade de agentes secretos russos aos ingleses. Em 2010, ele e outros três prisioneiros foram trocados por dez espiões russos que tinham sido detidos pelo FBI, a polícia federal americana. Livre, Skripal decidiu assentar-se na Inglaterra.
O caso lembra o do assassinato de outro ex-espião russo, Alexander Litvinenko, que ocorreu em 2006, três semanas depois de ele tomar um chá que continha o elemento radioativo polônio 210. “Os russos não tentam esconder a autoria dos ataques porque o objetivo é exatamente intimidar todos os dissidentes”, diz o historiador inglês Paul Maddrell, da Universidade Loughborough. Por conceder asilo político e ser um centro financeiro, a Inglaterra acolheu muitos opositores russos, a ponto de Londres ter ganhado o apelido de Londongrado. Encorajado pela experiência soviética de assassinatos internacionais, o governo russo sabe que a reação será branda e que, portanto, esse tipo de crime, no fim das contas, acaba compensando.
Afinal, para a primeira-ministra britânica Theresa May, não há muito que fazer. Em uma reação o mais enérgica possível, ela anunciou a expulsão de 23 diplomatas russos e o não comparecimento da família real à Copa do Mundo deste ano, na Rússia. Mas não foi além disso. “A Inglaterra está em uma posição fraca. Em decorrência do Brexit, não pode esperar que a União Europeia adote uma postura dura em relação à Rússia por causa do envenenamento do ex-espião”, diz o historiador Steve Hewitt, da Universidade de Birmingham. Um passo além seria impor sanções econômicas e bloquear os bens dos oligarcas russos ligados a Putin em Londres. Mas nem sequer isso poderia mudar alguma coisa. No domingo 18, Vladimir Putin, o espectro por trás de tudo, deve se reeleger com folga, mesmo com todas as sanções externas já em vigor.
Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574