O sertão vai virar luz
A seca no Nordeste derruba o nível dos reservatórios para o mesmo patamar de 2001. A diferença é que, agora, o país dispõe de fontes alternativas de energia
Em meados da década de 70, quando a barragem de Sobradinho começou a ser construída, no semiárido da Bahia, os compositores Sá e Guarabyra registraram o impacto causado pela obra com os versos: “O sertão vai virar mar, dá no coração / o medo que algum dia o mar também vire sertão”. Era o temor dos possíveis impactos ambientais da construção. Porém, além de prover água para o consumo humano e para a irrigação de plantações, o lago serve de reservatório para três usinas hidrelétricas ao longo da bacia do Rio São Francisco. A grave seca que castiga o Nordeste, a mais severa jamais registrada, deu nova atualidade à canção da dupla: o mar de Sobradinho está prestes a virar sertão. Com apenas 4,8% da capacidade total de água armazenada, é possível que o lago entre no volume morto no próximo mês. Se isso acontecer, as únicas duas turbinas da hidrelétrica que ainda estão ligadas devem ser desativadas. Detalhe: a usina representa quase 60% da capacidade de geração de energia no Nordeste. A probabilidade de desabastecimento de água nas cidades que margeiam o reservatório é iminente, mas não há, por enquanto, risco de falta de energia. Qual o milagre? As fontes alternativas, especialmente o vento. No mês passado, 53% da energia que abasteceu o Nordeste foi gerada em parques eólicos. A sombra do racionamento de energia de 2001 deixou um legado importante para o setor: o Brasil percebeu a urgência em diversificar sua matriz energética — e está fazendo o dever de casa.
Quando o assunto é falta de chuva, não é somente a Região Nordeste que está em uma situação delicada. Dados da consultoria Thymos mostram que o nível médio dos reservatórios das hidrelétricas de todo o país está no mais baixo patamar desde 2001 (veja abaixo). O fenômeno resulta dos efeitos do El Niño, que reduziu o volume pluviométrico no interior nordestino e em parte do cerrado brasileiro.
Tanto que o governo anunciou recentemente que as contas de energia de outubro virão com a bandeira vermelha no nível 2, a classificação mais cara na escala tarifária. O sistema de bandeiras foi criado em 2015 para sinalizar ao consumidor o custo de produção da energia. Na prática, a bandeira vermelha é aplicada quando as formas mais caras de geração são acionadas. Desde que o atual sistema está em vigência, a bandeira vermelha no nível 2 ainda não tinha sido acionada. Ela implica um custo extra de 3,50 reais a cada 100 quilowatts-hora, o que representa um acréscimo de 6 reais em uma conta de consumo médio. A tarifa adicional, uma maneira de incentivar a redução no consumo, deve ser mantida até o fim do ano. Apesar de o período de chuvas começar oficialmente em outubro, meteorologistas estimam que a pluviosidade ficará abaixo da média histórica neste ano. Se assim for, é possível que o nível dos reservatórios baixe para patamares inferiores ao de 2001.
Apesar das projeções preocupantes, o risco de um novo racionamento é baixo. “A recessão econômica e o aumento no preço das contas de luz fizeram com que o consumo ficasse estagnado nos últimos três anos. Se a demanda tivesse crescido como esperávamos, a situação atual seria muito pior”, ressalta João Carlos Mello, presidente da Thymos. Se o Brasil não tivesse ultrapassado a pior crise econômica da história, seriam necessárias mais duas usinas de Belo Monte para atender ao consumo.
Mas, além da recessão, um fator indesejado, o grande diferencial do quadro atual para crises energéticas passadas é a disponibilidade de energias alternativas. Em 2001, 90% de toda a eletricidade vinha de fontes hídricas. Os outros 10% eram gerados por usinas térmicas e nucleares. (Hoje, as fontes hídricas respondem por 73%, as térmicas e nucleares, por 21%, e as alternativas já chegam a 6%.) O Brasil acreditava ter uma capacidade de geração superior ao consumo nacional, mas o ciclo de seca severa no começo dos anos 2000 derrubou a produção de energia e forçou o corte no consumo. O ônus político e econômico do racionamento fez com que o planejamento energético fosse pauta dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. A necessidade de uma alternativa rápida e segura às hidrelétricas levou a investimentos em térmicas, uma opção cara e poluente. Apesar de seu custo, essas usinas salvaram o país de um racionamento em 2014, quando outro ciclo de seca severa baixou o nível dos reservatórios. Técnicos do Ministério de Minas e Energia alertavam para um possível racionamento, hipótese descartada pela ex-presidente Dilma, que tentava a reeleição. O acionamento de todas as térmicas encareceu as contas de luz, mas evitou o desabastecimento no país.
As fontes renováveis tornaram-se relevantes apenas recentemente, mas estão ganhando espaço. No mês passado, as usinas eólicas produziram 5 870 megawatts médios, suficientes para abastecer 25 milhões de pessoas. Já a energia solar ganhou os seus primeiros parques nos últimos dois anos. É um sistema ainda caro, que, para ser viável em larga escala, depende de uma queda no preço das placas fotovoltaicas, responsáveis pela captação da luminosidade a ser transformada em eletricidade. Em setembro, foi inaugurado no sertão da Bahia o maior polo de geração de energia fotovoltaica da América Latina, implantado pela italiana Enel. A diversificação contribuirá, no futuro, para preservar o nível dos reservatórios de água, que não estão se recuperando plenamente nem mesmo nos anos mais chuvosos. Mas, se a economia voltar a crescer com força, como se espera, o país poderá enfrentar um novo gargalo energético. Não existe outro grande projeto de geração previsto, observa Cristopher Vlavianos, presidente da comercializadora de energia Comerc. “Seria importante investir em fontes seguras e baratas, como a geração térmica a gás.” Se não quiser passar um atestado de incompetência, o governo precisa acelerar a concessão de projetos para livrar os brasileiros definitivamente do risco de apagões. Não faz sentido que um país tão rico em recursos como água, vento, sol e gás natural enfrente essa ameaça.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551