O privilégio dos bacanas
Acabar com o foro especial para os políticos é uma medida correta, mas isso não significa que a vida dos corruptos ficará mais difícil
Reza a sabedoria popular que Justiça que tarda é Justiça que falha. Porque perpetua a impunidade e, quase sempre, favorece poderosos de colarinho branco acusados de crimes diversos, de corrupção a racismo. Uma das razões da notória lentidão do Poder Judiciário para julgar autoridades é o chamado foro privilegiado, regra criada no Brasil monárquico para proteger o imperador dom Pedro I, “pessoa inviolável e sagrada”, que não estava “sujeita a responsabilidade alguma”. Na República brasileira, a casta de “invioláveis” é hoje formada por inacreditáveis 55 000 pessoas, de ministros de Estado a comandantes de corpo de bombeiros, passando por vereadores e parlamentares. Os beneficiários da regra, sobretudo os congressistas, não têm do que reclamar. São raros os episódios de deputados e senadores condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No caso da Operação Lava-Jato, que completou quatro anos em março, não existe uma única sentença condenatória. O primeiro processo sobre o petrolão, contra o deputado Nelson Meurer (PP-PR), só deve ser analisado pelo STF no próximo dia 15. E não há ainda data definida para o julgamento dos outros políticos sob investigação.
Responsabilizado pela sensação generalizada de que políticos com mandato não são punidos, o Supremo resolveu reagir e, nesta quarta-feira, 2, deve limitar o alcance do foro privilegiado. A proposta do relator, o ministro Luís Roberto Barroso, já conta com a adesão de sete dos onze ministros do tribunal e restringe o foro especial apenas a casos em que deputados e senadores são acusados de crimes cometidos durante o exercício do mandato e que tenham relação com o próprio mandato. Ou seja: crimes anteriores ficam sem proteção especial, assim como crimes sem conexão com a atividade parlamentar, como um homicídio passional, por exemplo. A proposta encerra o reconhecimento por parte do STF de que o tribunal não tem sido ágil para julgar acusações contra parlamentares — seja pelo volume de trabalho, seja porque, por ser uma corte constitucional, ele não tem expertise para cuidar de processos criminais. A restrição do foro, se aprovada, desafogaria os escaninhos do Supremo, já que menos de 10% das ações penais envolvem crime cometido em razão do mandato. Com a redução do volume de trabalho e mais tempo para analisar os casos que continuarão no STF, os ministros, em tese, poderão prestar o serviço judicial em prazo mais curto.
Disse o ministro Barroso ao votar: “A prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas”. Historicamente, o foro privilegiado foi responsável por garantir que apenas poucos parlamentares fossem penalizados pelo Supremo, em sua maioria durante o julgamento do mensalão. Caciques enrolados com a Justiça, como os senadores emedebistas Renan Calheiros, alvo de quase vinte inquéritos, e Romero Jucá, que responde a treze ações, nunca foram importunados com ameaças de condenação no Supremo. Caso seja confirmada a restrição ao foro, eles responderão pelas acusações de corrupção na primeira instância — desde que não estejam relacionadas ao exercício do mandato. Renan e Jucá são companheiros num inquérito, sob a acusação de terem embolsado 5 milhões de reais em propina em troca da aprovação de leis em favor da Odebrecht. Pela proposta que está sendo desenhada no Supremo, ambos manteriam o foro nesse processo. Nada mudaria, portanto.
Mas, no caso em que o senador Renan Calheiros é acusado de ter recebido dinheiro de uma empreiteira para pagar a pensão de uma filha, processo que se arrasta há mais de uma década, com risco real de prescrição, o destino tenderia a ser a primeira instância. A Lava-Jato difundiu no imaginário popular a percepção de que não é um bom negócio para o político ser julgado na primeira instância. O mantra é conhecido: “Sem foro, é Moro”. Responsável pela operação em Curitiba, o juiz Sergio Moro já condenou 123 pessoas — entre elas o ex-presidente Lula, que está preso. O juiz Marcelo Bretas, responsável pela Lava-Jato no Rio, já sentenciou 37 figurões, com destaque para o ex-governador Sérgio Cabral.
O problema é que os casos de Moro e Bretas não são regra. Eles só cuidam das ações relacionadas ao petrolão, enquanto nas demais varas do país seus colegas decidem sobre processos diversos. Além disso, nos rincões do país, não raro os juízes mantêm relação pessoal com o político a ser julgado ou ficam sujeitos à pressão dos mandachuvas locais. Há risco, portanto, de a demora e a blindagem apenas mudarem de endereço — ou de instância.
Doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino mostra-se preocupado com a perspectiva de ainda mais demora nos julgamentos se processos em tramitação no Supremo descerem para a primeira instância. Ele ressalta que nem todo juiz é como Sergio Moro. Ou seja: a restrição ao foro, para ele, pode ter efeito contrário ao esperado: “Pode haver uma frustração da população por causa da expectativa que existe com o fim do foro, particularmente em razão da velocidade dos processos da Lava-Jato em Curitiba”. Ao descerem para a primeira instância, processos podem voltar à estaca zero. Resultado: o político que por longos anos não teve seu caso julgado no STF passa a ter a perspectiva real de ser beneficiado, na primeira instância, com a prescrição, cenário em que o Estado é impedido de puni-lo porque já se passaram muitos anos desde o crime. É por isso que algumas excelências, em vez de fazerem de tudo para que o foro seja mantido, abrem mão dele. É o caso do ex-presidente do PSDB, ex-governador e protagonista do mensalão tucano Eduardo Azeredo.
Denunciado em 2007 por peculato e lavagem de dinheiro, Azeredo renunciou ao mandato de deputado federal em 2014, quando o seu processo estava em fase de alegações finais no STF. Conseguiu, assim, que a ação descesse para a primeira instância. Na semana passada, o Tribunal de Justiça de Minas de Gerais manteve a condenação dele a vinte anos e um mês de prisão, mas Azeredo ainda não será preso porque tem recursos a apresentar (veja a reportagem ). A impunidade, como se sabe, não se rende facilmente. Para coibir essa malandragem processual, a proposta sob análise do STF prevê que o foro não se altera mais se os autos estiverem em fase final e prestes ao julgamento. Assim, se o agente público vier a ocupar outro cargo ou renunciar ao que ocupa, o mesmo tribunal que preparou todo o processo levará o caso até o fim.
Como a proposta de restrição do foro apresentada no Supremo diz respeito apenas a deputados federais e senadores, as demais autoridades continuarão, até segunda ordem, com o direito a instâncias especiais. Para o grosso da casta, tudo continuará como imaginado nos tempos do Império. Em compensação, a mudança pelo menos atingirá deputados e senadores, personagens centrais da Lava-Jato. “O foro privilegiado é excessivo. Não encontra paralelo no mundo. Se ele subsistir, talvez devesse no máximo ser mantido para os chefes dos três poderes. A prerrogativa de foro acaba gerando na população essa percepção em torno da impunidade. Isso é muito grave”, disse a VEJA o ministro Celso de Mello, decano do Supremo.
Nos últimos meses, o STF atuou como catalisador de insegurança jurídica ao tentar, por pressão de advogados e de alguns de seus integrantes, retomar uma tese igualmente relevante para o combate à impunidade: a de que não pode haver cumprimento da sentença antes de esgotados todos os recursos possíveis. Por oportunismo político-judicial, o Partido Ecológico Nacional (PEN) desistiu de reabrir a ação em que pedia o fim das prisões em segunda instância, mas o assunto não se encerrou. Outra ação, de autoria do PCdoB, também movida por interesses políticos, está pronta para ser votada pelo plenário da Corte. A derrubada da antecipação da pena será música aos ouvidos dos criminosos. No caso de deputados e senadores, eles começariam a ser julgados por um juiz de primeiro grau e poderiam recorrer em liberdade a todas as instâncias. Coisa de anos, às vezes décadas, tudo sem o risco de ser levados ao xilindró no meio do caminho. Será o combo perfeito para os criminosos de colarinho branco.
Entre os prováveis beneficiados pela eventual mudança de entendimento estão o petista Lula e o tucano Azeredo. Outros personagens do petrolão, como Antonio Palocci, José Dirceu e Eduardo Cunha, também estariam mais próximos da liberdade (veja o quadro). O efeito sobre as delações da Lava-Jato também seria grande, porque, sem a ameaça de prisão iminente, corruptos e corruptores teriam menos disposição para contar o que sabem e negociar uma delação. Quando a Lava-Jato dava sinais de que chegaria aos gabinetes mais poderosos da República, políticos planejaram detê-la por meio de medidas legislativas. A mais famosa delas foi a tentativa fracassada de aprovar uma anistia ampla, geral e irrestrita ao caixa dois. Depois, nas palavras imortais do senador Romero Jucá, a ideia era “estancar a sangria” de modo abrangente, “com o Supremo, com tudo”. Eventual derrubada da prisão após condenação em segunda instância mostrará que o intrépido Jucá chegou lá.
Coordenador da Lava-Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol defende o fim do foro, para evitar tratamento desigual a mais de 50 000 pessoas, mas preocupa-se com a possibilidade de a medida ser acompanhada do fim da prisão em segunda instância. A combinação, diz ele, jogaria para as calendas gregas o acerto de contas dos poderosos com a Justiça. Manoel Galdino, da Transparência Brasil, concorda. “O fim do foro privilegiado e a reversão da prisão em segunda instância devem aumentar a impunidade”, afirma. É a tempestade perfeita.
Com reportagem de Gabriel Castro
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580