Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

O paradoxo dos rios e dos lagos

É um dos grandes dilemas de nosso tempo: como pode haver tanta água doce na Terra e ainda assim vivermos em escassez?

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h37 - Publicado em 16 mar 2018, 06h00

Apenas 1% de toda a água doce da Terra é potável. Parece muito pouco, mas seria quantidade mais do que suficiente para o consumo dos mais de 7 bilhões de humanos que habitam este planeta. Ainda mais no Brasil, que concentra 12% de toda a oferta global de água doce — uma enormidade. Por que, então, há tanta gente sem água, num dos mais assustadores dilemas ambientais de nosso tempo? O problema é a distribuição, profundamente desigual, e o descaso com rios e lagos. Nisso, o Brasil também é péssimo exemplo. São desperdiçados 41% de toda a água tratada em território nacional. É um paradoxo haver escassez na nação mais alagada da Terra. No entanto, trata-se de uma contradição facilmente explicável.

Tome-se a Região Norte, dominada pela Amazônia, como referência. A floresta, distribuída em sete estados brasileiros, é tida como o bioma com a maior disponibilidade de água per capita, mas também concentra as piores taxas de saneamento básico. Enquanto em todo o país 48,1% da população tem rede de esgoto, no Norte, bem no meio do rico ecossistema amazônico, esse índice não passa de 9,6%. No Centro-Oeste, em paisagem marcada pelo cerrado e pelo Pantanal, a coleta de esgoto abrange 47,5%. Em outras palavras, tudo somado, 71,5% do lixo produzido nessas duas áreas do Brasil é jogado em rios e lagos, contaminando-os. Dá-se, portanto, o paradoxo da simultânea abundância e da falta d’água. Bastaria atenção no monitoramento das atividades humanas que dependem das águas fluviais, evitando a imundície, para que tal contrassenso fosse extinto — e aí sobraria água para todos.

PANTANAL-DESMATAMENTO-SOJA-2018-0208.JPG
Jeito errado – No alto, mineração no bioma do Pantanal; acima, agricultura sem controle: práticas danosas (Jonne Roriz/VEJA)

Faltando duas semanas para o início do Fórum Mundial da Água, que se dará em Brasília a partir de domingo 18, VEJA acompanhou com exclusividade, no Brasil, um trabalho da ONG internacional de conservação World Wildlife Fund (WWF) no Pantanal. A chamada Jornada da Água, em sua quarta edição, percorreu o Rio Paraguai, que dá corpo ao bioma brasileiro. Cada Jornada da Água explora algum rio importante do mundo, e essa foi a primeira vez que ela aconteceu na América Latina. A Jornada é um triste microcosmo dos problemas com as águas fluviais que atingem o planeta todo.

O ponto de partida da viagem foi uma nascente na cidade de Diamantino, a 230 quilômetros de Cuiabá, capital de Mato Grosso, ainda no bioma de cerrado. De lá, a reportagem seguiu, por navegação, em direção ao Rio Paraguai, para a aventura pelos 150 000 quilômetros quadrados da região pantanosa. O primeiro problema que salta aos olhos: 55% das áreas dos mananciais do rio, o mais relevante para a manutenção do ecossistema local, foram desmatadas para o cultivo de soja, milho e para a pecuária. No caso da criação de gado, há dois métodos de trabalho. Um deles é sustentável. O outro, não. Na versão benigna, os bois migram das áreas mais baixas para as mais altas quando o rio começa a encher, e desse modo não prejudicam o meio ambiente. No entanto, esse mecanismo resulta numa produção pecuária menor. A outra forma, mais lucrativa, é desmatar para a criação de pastos, mas isso amplia os estragos. Por esse motivo, o cerrado, bioma vizinho e que influencia diretamente o pântano, perde 1% de seu território ano após ano. O problema é ainda mais grave porque oito das doze bacias hidrográficas brasileiras são abastecidas ali.

Continua após a publicidade
O paradoxo dos rios e dos lagos
Drama – A pesca predatória e a elevação da temperatura do lago mataram parte da fauna do Tanganyika, fonte de comida para a Tanzânia, o Congo, o Burundi e a Zâmbia (Michael Christopher Brown/.)

De mãos dadas com o desmatamento, outro nó é a sujeira, pura e simplesmente. Na sequência, em Cáceres, porta de entrada para o Pantanal, em menos de cinco minutos numa voadeira na correnteza fluvial do Paraguai, pode-se flagrar o escoamento de esgoto diretamente no rio. Apenas 30% do despejo vindo dos municípios da região é tratado — os 70% restantes poluem o lençol freático. É reflexo de um infortúnio que se espalha globalmente. Em todo o mundo, 30 bilhões de toneladas de lixo urbano são jogadas anualmente em rios, lagos e oceanos. Desse total, 80% têm origem doméstica. Em efeito contínuo, 700 milhões de indivíduos acabam por sobreviver de água contaminada. As doenças provocadas pelo consumo de água podre matam 250 milhões de pessoas a cada ano.

Um novo estudo da WWF, ao qual VEJA teve acesso antecipado, revelará que 40% das áreas das nascentes do Pantanal estão ameaçadas pela ocupação urbana e pela mineração sem regras. Diz o engenheiro florestal Júlio César Sampaio, da WWF: “Há tendência de abusar das riquezas da natureza, desmatando e poluindo”. A frase, evidentemente, não descreve apenas a situação do Pantanal. Ela serve para retratar o delicado cenário global. Felizmente, a natureza é resiliente — e, além disso, há sempre produtores de bom-senso, atentos às boas normas. Os ingleses conseguiram recuperar o Rio Tâmisa, que até o início do século passado era tão repulsivo quanto o Tietê, que corta São Paulo. O projeto de limpeza do Tâmisa levou um século, mas valeu o esforço: hoje, em pleno coração de Londres, corre um rio limpo. Resta saber se imitaremos os ingleses ou se continuaremos com a devastação até o momento em que a epidemia não terá mais cura.

Continua após a publicidade
ESP-MAPA-AGUA-IPHONE
(./VEJA)

arte-agua-iPhone

Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574
Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.