O mais exigente dos direitos
O debate sobre liberdade de expressão pega fogo, mas poucos, no Brasil, defendem esse princípio
O Movimento Brasil Livre (MBL) e Alexandre Frota talvez contem o fato como uma vitória, embora não tão expressiva quanto o fechamento antecipado da mostra Queermuseu: a exposição Histórias da Sexualidade, em cartaz no Museu de Arte de São Paulo a partir da sexta-feira 20, terá classificação etária de 18 anos. É a primeira vez que o Masp determina um limite de idade para uma mostra. A novidade institucional foi obviamente motivada pela recente barulheira em torno da Queermuseu — cancelada, em razão dos protestos, pelo Santander Cultural de Porto Alegre — e pela desproporcional polêmica a propósito da criança que tocou no pé de Wagner Schwartz quando ele fazia, nu, a performance La Bête, no MAM, em São Paulo. O Masp buscou consultoria jurídica e concluiu que o mais prudente seria proibir a entrada de menores de 18 anos na exposição, que, planejada já há dois anos, inclui Cena de Interior II, de Adriana Varejão, obra que já gerou uma bizantina controvérsia sobre zoofilia quando exposta no Queermuseu. É de esperar que, afastado o fantasma da perversão das crianças, os grupos que têm capitaneado os protestos — notadamente, as brigadas do MBL — se aquietem momentaneamente. No entanto, resta uma distorção de princípios: o mais extremo limite etário previsto na lei é adotado não pelo receio de que as obras expostas possam deformar a impressionável mente do marmanjo de 17 anos que tem pleno acesso a sites de pornografia, mas porque é necessário aplacar a estridência de grupos de pressão. Há outras distorções nesse inflamado debate público, no qual o princípio da liberdade de expressão raramente é defendido com a necessária clareza.
A idade mínima não é costumeira em exposições no Brasil. Nem é consenso internacional. Uma mostra de Shunga, arte erótica japonesa (que inspirou o quadro de Adriana Varejão), no Museu Britânico, em 2013, era limitada para maiores de 16, mas, atravessando o Canal da Mancha, na França, uma campanha recente do Museu d’Orsay convida os pais a levarem seus filhos para ver quadros de gente nua. De volta ao Brasil, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, uma exposição de Pedro Moraleida, artista morto em 1999 aos 22 anos, tem classificação de 18 anos e mesmo assim motivou manifestações de grupos religiosos. Protestos são do jogo democrático.
Um ponto muito mais além da curva foi a intervenção autocrática do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que barrou negociações para levar uma versão da Queermuseu para o Museu de Arte do Rio. Em vídeo, Crivella ecoou as acusações de pedofilia feitas à mostra. “Estamos vendo uma enorme campanha difamatória contra a produção artística”, diz Gaudêncio Fidélis, curador da Queermuseu, que anuncia uma ação na Justiça contra os difamadores. Gabriela Gonçalves, produtora de La Bête, também contempla a ideia de buscar reparação pelas acusações feitas a Wagner Schwartz. “A performance foi difamada. É um absurdo chamar Wagner de pedófilo.” Ao que parece, o debate crítico sobre arte agora será judicial.
O engajamento de um político evangélico como Crivella e o empenho do MBL na causa censória — em contradição com o propalado ideário liberal do movimento — transportaram a conversa para o terreno movediço da polarização ideológica. A reação mais notável veio do grupo de artistas #342Artes, originalmente congregado pela causa do “Fora, Temer”, que agora montou uma campanha “contra a censura e a difamação”. Em vídeo, estrelas como Caetano Veloso, Alinne Moraes e Christiane Torloni aparecem tapando e destapando o rosto com as mãos. São menos felizes quando deixam a mímica para falar. Caetano Veloso se diz chocado porque no século XXI ainda se discute censura. Ora, foi só em 2015 que o STF descartou em definitivo a necessidade de que biografias tivessem autorização dos biografados, no que configurava censura prévia. Dois anos antes, Caetano foi um dos mais eloquentes membros do grupo Procure Saber, que defendia o cerceamento aos biógrafos. Alinhava-se a Roberto Carlos, que conseguiu na Justiça, em 2007, a proibição de uma biografia sua escrita por Paulo Cesar de Araújo. À luz desse episódio, a oposição de Caetano à censura é tão convincente quanto a preocupação do ex-ator pornô Alexandre Frota com a formação moral das crianças.
O princípio cardinal da liberdade de expressão aparece de forma vaga no vídeo do #342Artes. A conversa dos artistas soa corporativa: uma defesa limitada da liberdade deles. Sim, casos históricos de luta contra a censura envolveram manifestações artísticas — como o julgamento que, na Inglaterra, em 1960, liberou O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, proibido por leis contra a obscenidade, ou a querela judicial sobre uma exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe (que, aliás, estará na mostra do Masp) em Cincinnati, em 1990.
A importância da liberdade de expressão, porém, não se limita à arte. A imprensa livre que fiscaliza o poder, o fluxo desimpedido de conhecimento, o debate vivo de ideias são fundamentos da vida democrática. Mas o direito universal à expressão embute um incômodo para mentalidades totalitárias: em uma sociedade livre, nossas ideias mais arraigadas serão contestadas, nossos gostos e afetos mais caros serão ridicularizados, nossa fé será posta em dúvida pelo ceticismo ou pela fé concorrente do vizinho.
Hoje, com muita facilidade, a carta da ofensa é lançada na mesa para silenciar argumentos contrários. Supostas ofensas à religião são matéria sensível. No Brasil, o artigo 208 do Código Penal, que torna crime “escarnecer” da religião, tem sido invocado para censurar expressões artísticas (leia mais). Ana Smile, artista brasiliense radicada em Goiânia, foi proibida, por liminar, de produzir suas divertidas versões da Virgem Maria com figurino pop — de Mulher-Maravilha, Galinha Pintadinha, Minnie. Os processos ainda correm na Justiça cível e criminal. “Eu tinha largado o emprego para me dedicar apenas à arte. Tive de reconstruir a minha vida toda”, lamenta Ana. Esse é um caso em que deveria valer um princípio simples: se não gosta do que Ana Smile faz — seja por razões estéticas ou religiosas —, não compre. O filósofo do direito Joel Feinberg, americano, estabeleceu alguns critérios para que a ofensa seja de fato parâmetro para processo legal: ela tem de ser intencional (Ana jura que não é o caso), significativa e ocupar algum lugar que seja inevitável para a pessoa ofendida. As estatuetas de Ana, a exposição Queermuseu e a performance La Bête são todas perfeitamente evitáveis. Vê e visita quem quer. Em praça pública, seria outra história: ninguém pode acusar o Museu do Louvre de censura por ter recusado a instalação, ao ar livre, nas Tulherias, de uma obra do holandês Joep van Lieshout que apresenta duas casas fazendo sexo (Domestikator, a obra em questão, acabou em outro espaço público de Paris, perto do Centro Georges Pompidou).
O sentimento de ofensa, porém, vulgarizou-se com a obsessão contemporânea por minorias e grupos identitários. O historiador Timothy Garton Ash, autor de Free Speech (Liberdade de Expressão, sem edição no Brasil), livro lançado em 2016 em que faz uma vigorosa defesa da liberdade de expressão e um nuançado exame de seus limites e problemas, acusa a proliferação de ofendidos no debate público: o Muçulmano Ofendido, a Mulher Ofendida, o Homossexual Ofendido, o Negro Ofendido. Pouco importa qual foi a ofensa, ou se ela de fato aconteceu: legitima-se “o ato subjetivo de se sentir ofendido”. Não faltam exemplos, no Brasil, de patrulhamento censório embasado em ofensas raciais duvidosas: a cantora Mallu Magalhães foi apedrejada nas redes sociais por um vídeo em que se colocava à frente de dançarinos negros, e o filme Vazante foi atacado no Festival de Brasília por não ter a visão “correta” da escravidão — sugeriu-se até que a diretora, Daniela Thomas, deveria descartá-lo em vez de exibi-lo.
Os conservadores que pedem o fechamento de exposições e museus, os progressistas que inviabilizam palestras de convidados “indesejáveis” em universidades, os militantes do movimento negro que assediam jovens brancas com turbante no metrô — todos julgam exercer o próprio direito à expressão. E de fato a liberdade de expressão, dentro de certos limites, abarca até o direito de quem ataca a livre expressão dos outros. Sim, é permitido até externar ímpetos censórios, embora quase ninguém o faça com clareza e honestidade. “Censor, eu? Nem morta!”, dizia Caetano em 2013, em O Globo, num artigo em que defendia a censura a biografias não autorizadas. À esquerda e à direita, é raro encontrar quem entenda o fundamental nesse debate: o direito à livre expressão do próprio pensamento traz consigo o dever de ouvir os argumentos contrários, que fazem parte da livre expressão do outro.
Com reportagem de Patrícia de Holando e Eduardo F. Filho
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553