O juiz e o empresário
Como magistrado, Gilmar Mendes é implacável com a JBS e os irmãos Batista. Mas, em privado, a relação entre eles reúne um histórico de favores
O ministro Gilmar Mendes, há quinze anos no Supremo Tribunal Federal (STF), é um homem de posses muito além de seu salário de 33 700 reais. Uma de suas principais fontes de renda é o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual é sócio junto com seu filho Francisco Schertel Mendes, de 34 anos. Entre 2008 e 2016, segundo registros oficiais, o ministro recebeu 7,5 milhões de reais do IDP, a título de distribuição de lucros. No ano passado, teve um de seus períodos mais rentáveis: embolsou 900 000 reais. O ministro mora em uma confortável casa à beira do Lago Paranoá, em Brasília, e, recentemente, adquiriu um apartamento no aprazível bairro Príncipe Real, em Lisboa, para onde vai duas vezes por ano.
Gilmar não vê inconveniente em ser a um só tempo ministro do STF e sócio do IDP. Criado há vinte anos, o instituto tem sede em Brasília, também funciona como faculdade de direito, com 1 500 alunos, participa do Fies, o programa federal que distribui bolsas a estudantes carentes, e promove seminários e palestras no Brasil e no exterior, sempre com o patrocínio de grandes empresas. Até o mês passado, o patrocínio estava entre as maiores fontes de renda do IDP. Com tudo isso, o instituto fatura, em média, 20 milhões de reais anuais. “Não vejo nenhum problema (em ser ministro do Supremo e sócio do IDP). Eu era professor antes de ser ministro”, diz ele.
Sua opinião está longe de ser uma unanimidade. Na atual composição do STF, não há ministro com participação societária em institutos nos moldes do IDP. Alguns colegas de Gilmar Mendes, que pediram para não ser identificados para evitar animosidades na corte, acham que a situação é imprópria. Diz um deles: “Essa circunstância traz constrangimento. Embora evitemos verbalizar o assunto, esse sentimento é geral”.
Em 2008, um despacho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que fiscaliza as atividades dos magistrados, concluiu que a dupla condição de juiz e sócio de instituto era inadequada. O caso envolvia um juiz de Goiás, Ari Ferreira de Queiroz, então titular da 2ª Vara da Fazenda Pública de Goiânia. Ele também era sócio-proprietário de uma entidade, o Instituto de Ensino e Pesquisa Científica (IEPC). Analisando a questão, o então conselheiro Joaquim Falcão entendeu que juízes não podem ser sócios de cursos jurídicos, nem de qualquer outra atividade na qual possam usar seu prestígio como magistrados para obter lucro. O entendimento restringiu-se ao caso específico. E, como o CNJ não tem autoridade para definir o que os ministros do STF devem ou não fazer, a decisão não afetou Gilmar Mendes.
“Quando o magistrado participa de forma individualizável em sociedade com objeto de atuação justamente no Poder Judiciário, está claramente exercendo ato de empresa, já que o prestígio de seu cargo está sendo utilizado para buscar lucros, contrariando, portanto, proibições legais”, afirmou Falcão, relator do processo. “A imagem, o prestígio e até mesmo a eventual influência do magistrado como titular de cargo público acrescentam valor à sociedade. O papel do magistrado (…) passa a ser valor intangível dela.” Em seu relatório, Falcão anotou que Portugal, Espanha e Estados Unidos também vedam a participação de juízes em sociedades.
Ouvido por VEJA, um dos ministros considera o tema um grande tabu na corte, motivo pelo qual o plenário dificilmente tratará da questão. Indagado, o próprio Gilmar disse que não conhece a situação que deu origem à decisão do CNJ. E desqualificou-a: “É uma decisão monocrática, que não tem valor nenhum. Se houvesse alguma ilegalidade, já teriam levantado”.
Ainda que Gilmar Mendes não veja inconveniente na sua situação, o IDP, além de uma fonte de receita, passou a ser uma fonte de dor de cabeça para o ministro, depois que veio a público o caso da JBS e das traficâncias dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Isso porque, nos últimos dois anos, Gilmar e Joesley mantiveram uma parceria comercial e uma convivência amigável, a ponto de se visitarem em Brasília e São Paulo, trocarem favores, compartilharem certezas e incertezas jurídicas e tocarem projetos comuns. De 2016 a junho deste ano, a JBS transferiu 2,1 milhões de reais para o IDP em patrocínios que nem sempre foram públicos. Do total, 650 000 acabaram devolvidos depois da delação dos Batista. Em 2016, o IDP teve 21 patrocinadores, que transferiram 4 milhões de reais para o instituto. O maior foi a JBS, com 500 000 reais.
A aproximação entre JBS e IDP começou em 2015, por meio da então diretora do instituto, Dalide Corrêa, uma advogada de 59 anos, assessora de Gilmar Mendes há quase duas décadas. Diante do pedido de Dalide para que a JBS patrocinasse seminários do IDP, Joesley disse que queria conhecer o ministro. Em 15 de junho de 2015, eles jantaram juntos na casa do empresário no bairro dos Jardins, em São Paulo. Foi um encontro descontraído, do qual também participaram Dalide e o diretor jurídico da JBS, Francisco de Assis e Silva — que passaria a ter uma missão estranha dali em diante. Uma companhia do porte da JBS tem dezenas de especialistas em marketing e conta com as maiores agências de publicidade para oferecer consultoria. O patrocínio ao IDP, porém, foi tratado por Francisco de Assis, e, sabe-se lá por quais razões, o assunto era considerado “confidencial”.
VEJA teve acesso a e-mails e documentos que revelam detalhes das tratativas para o contrato e as circunstâncias que levaram ao rompimento. O contrato com a JBS foi assinado em 2015. Em mensagem de novembro daquele ano, Francisco de Assis recomenda ao seu departamento financeiro que “trate confidencialmente dos valores” acertados com o IDP. Os repasses, VEJA apurou, nunca seguiram uma ordem cronológica e, embora tivessem os eventos do IDP como destino, nem sempre chegavam conforme o combinado.
Os valores de patrocínios de empresas iam parar, por vezes, na conta pessoal de Gilmar Mendes. É o que revela uma das mensagens obtidas por VEJA. Em 12 de junho de 2016, o ministro escreveu por WhatsApp para Dalide, a diretora do instituto, o seguinte: “Veja se consegue começar a me pagar o resultado do patrocínio”. Ela respondeu: “Quer de uma vez ou dividido?”. Agradecido, o ministro ressalta que tinha “contas altas” a pagar. Apesar disso, e indagado mais de uma vez, ele garantiu a VEJA que “não recebe nenhuma verba de patrocínio”.
As empresas privadas investem em patrocínios para divulgar suas marcas. No contrato com o IDP, a JBS podia ter esse objetivo tão corriqueiro, mas não era o único. No fim do ano passado, já com as águas da Lava-Jato no pescoço, Francisco de Assis esteve no IDP. Em conversa com Gilmar e Dalide, contou que a JBS tinha contribuído com milhões de reais para campanhas políticas via caixa dois e disse que a única solução para que a empresa se safasse seria a aprovação de uma regra que permitisse zerar as pendências com a Justiça Eleitoral e a Receita Federal. Assis perguntou se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por Mendes, poderia resolver a questão por meio de uma resolução. O ministro disse que não era possível. Assis propôs também que o IDP organizasse um seminário que, a pretexto de debater a reforma política, servisse de palco para que formadores de opinião defendessem a tese da anistia ao caixa dois.
A JBS queria usar o evento para encorajar o Congresso, que ensaiava votar a medida. Combinaram então um seminário sobre o tema. Na conversa, Assis deixou evidente que a JBS remuneraria o instituto pela ajuda, e fez uma pequena exigência: algumas pessoas deveriam ser convidadas para o seminário — entre elas o procurador Anselmo Lopes, que investigava os aportes de fundos de pensão à empresa dos irmãos Batista, e a juíza Selma Arruda, chamada de “Moro de Mato Grosso”. O plano era reuni-los para ouvir as teses de interesse da empresa. O procurador e a juíza foram convidados, mas não compareceram ao seminário, realizado em novembro de 2016. No evento, organizado pelo IDP em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil, o patrocínio da JBS não apareceu publicamente. Dalide confirma: “Francisco esteve no instituto e sugeriu o nome de alguns palestrantes e de pessoas que deveriam ser convidadas, além de temas que eram de interesse da empresa, dos quais não me recordo. Eu passei esses pedidos aos coordenadores acadêmicos do evento”.
A relação entre Gilmar Mendes e Joesley intensificou-se com o tempo. O ministro chegou a receber o empresário e o diretor de relações institucionais da JBS, Ricardo Saud, que também está preso, num churrasco em sua casa, em Brasília. E a convivência estendeu-se a questões familiares. A JBS comprou em Mato Grosso uma propriedade de 300 hectares que vinha sendo arrendada a Francisco Mendes, irmão do ministro. Francisco queria se manter nas terras, nas quais criava gado e plantava soja. Dalide então pediu a Assis, diretor jurídico da JBS, que não desalojasse o irmão do ministro. Em mensagem de áudio, o executivo responde: “Pode deixar que eu já mandei um e-mail para o diretor administrativo para ele me esperar amanhã para eu tentar resolver isso lá”. Depois, complementa: “Missão é arrendar para o Chico Mendes, correto? Resolvido aqui”. As mensagens foram repassadas para Gilmar Mendes.
A última reunião entre Gilmar Mendes e Joesley Batista ocorreu em 1º de abril, quando foram gravadas as imagens que ilustram a abertura desta reportagem. Durante meia hora, Gilmar e Joesley, junto com Dalide e Assis, conversaram na sede do IDP sobre um processo de interesse da JBS em julgamento no Supremo, relativo ao Funrural, um fundo para o qual o setor agropecuário é obrigado a contribuir. Àquela altura, Joesley já perambulava pelos gabinetes de Brasília com um gravador no bolso. O ministro desconfia que, numa armadilha montada pela Procuradoria-Geral da República, a conversa tenha sido gravada. Se foi mesmo, até hoje a fita não apareceu. Em 13 de junho, depois da explosão da delação dos irmãos Batista, o IDP decidiu encerrar unilateralmente o contrato. O motivo: não poderia “ignorar os fatos noticiados pela imprensa”. É uma decisão curiosa, no fundo. Há diversos institutos e veículos de comunicação — VEJA inclusive — que continuam suas relações comerciais com a JBS, recebendo patrocínio em eventos e veiculando anúncios publicitários da empresa. Trata-se de uma relação comercial transparente e pública. Quem parou de fazê-lo agora, como ocorreu com o IDP, abre espaço para a suposição de que, antes da delação, tinha com a JBS alguma relação subterrânea, de natureza extracomercial, e não a relação convencional e aberta. Se o patrocínio era perfeitamente legítimo, com propósito lícito e correto, por que a empresa deveria sumir da divulgação de eventos e anúncios?
Em público, Gilmar Mendes tem sido um crítico das delações e, particularmente, do tratamento que os donos da JBS receberam da Procuradoria da República. Já disse que a delação dos irmãos Batista fora um “vexame institucional”, defendeu sua anulação, referiu-se aos delatores como “bandidos” e negou um habeas-corpus para livrá-los da cadeia. Tudo isso sugere que os patrocínios da JBS ao seu IDP não compraram a consciência do ministro, que manteve a independência intelectual e jurídica, mas a relação com os Batista, como o próprio cancelamento do contrato mostra, gerou incômodo e constrangimento.
Toda essa situação poderia ter sido evitada por Gilmar Mendes — bastava que seguisse o CNJ, ou a postura de colegas de STF, ou mesmo a tradição das democracias sólidas, em que os magistrados, em geral, não têm fonte de renda alternativa. Em Portugal, onde Gilmar Mendes tem apartamento, é proibido aos magistrados ter outra atividade profissional, com exceção da docência e pesquisa jurídica, como no Brasil. A diferença é que, lá, as atividades permitidas não podem ser remuneradas. Na Espanha, a participação em sociedades também é proibida. Nos EUA, a situação é mais rigorosa. O juiz não pode usar seu prestígio para promover interesse privado, nem na docência. Os americanos permitem a magistrados ensinar em estabelecimentos sem fins lucrativos e integrar o conselho de instituições de ensino, mas sem remuneração nos dois casos.
Joesley Batista está preso, teve os benefícios de sua delação revogados. Francisco de Assis, o diretor jurídico, está livre, mas com seu acordo sob revisão. Dalide Corrêa, depois de vinte anos ao lado de Gilmar Mendes, deixou o IDP.
“Não fiz nenhum pedido a eles”
A VEJA, o ministro Gilmar Mendes disse que Joesley Batista quis conhecê-lo após um pedido de patrocínio ao seu instituto. Ele admite ter encontrado o empresário algumas vezes, mas garante que a relação nunca ultrapassou os limites éticos.
O senhor não vê nenhum problema em ser ministro do STF e ao mesmo tempo sócio do instituto? Nenhum. Eu era professor antes de ser ministro. Continuei professor. Aqui no Supremo, por exemplo, Bilac Pinto era dono da editora Forense. Nunca ninguém levantou dúvida sobre isso.
E quanto ao fato de o instituto receber patrocínio de empresas que podem eventualmente ter interesse na corte? Isso nem precisa verificar, eu não sou diretor do instituto, não acompanho.
Quando o senhor conheceu Joesley Batista? Não sei. Tive três ou quatro encontros com o Joesley. Ele ia muito ao IDP com o Francisco (de Assis, diretor jurídico da JBS).
O senhor se lembra de um jantar na casa dele, em São Paulo? Pode ter sido, não sei.
O senhor o recebeu em sua casa em Brasília? Tenho a impressão de que um dia ele passou lá. Havia um churrasco. Dalide falou que o Joesley estava aqui, e ele passou lá.
O senhor foi consultado por Joesley, no IDP, sobre uma forma de suavizar uma decisão do STF sobre o Funrural? Acho que houve um tipo de especulação assim. Eu falei: esse processo agora está com o ministro Alexandre. Alexandre acho que até foi advogado deles, em outro processo. Então, não tinha o que fazer.
Qual era o destino de patrocínios que a JBS dava ao IDP? Eventos.
Era comum haver transferências para suas contas após o IDP receber patrocínios? Não. Na verdade, nós fazíamos retirada quando achávamos que havia saldo e podíamos retirar. Em geral, nessa coisa de patrocínio, a ideia era ter um fundo para sustentar eventos e bolsas (de estudos).
A JBS sugeriu temas e convidados para um evento organizado pelo IDP sobre reforma política? Não tenho o menor conhecimento disso.
O diretor jurídico da JBS lhe pediu ajuda para resolver o problema de caixa dois eleitoral? Não me lembro. Nunca.
O senhor se recorda de a JBS ter sido acionada por sua assessoria para resolver um problema fundiário de seu irmão? Não tenho conhecimento.
Em um áudio enviado ao senhor, Francisco de Assis diz que resolveu o problema. Agora estou lembrado. A Dalide me falou isso e disse claramente que meu irmão teria pedido a ela (para falar com a JBS).
É natural pedir esse tipo de favor a uma empresa com interesses no Supremo? Favor? Não fiz nenhum pedido a eles.
Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2017, edição nº 2561
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Na segunda-feira, o advogado Francisco de Assis e Silva, da J&F, encaminhou a seguinte carta à Redação:
A respeito da reportagem “O Juiz e o Empresário”, publicada nesse Portal, o texto não esclareceu devidamente que a J&F é, certamente, um dos grupos empresariais que mais investiu, na história do país, em marketing, publicidade e apoio a atividades sociais, culturais e educacionais. Essa é, aliás, uma das explicações para o sucesso de suas marcas e de seus produtos. Isolar uma única de suas iniciativas sem considerar o contexto não é correto nem justo.
Supor que patrocínios embutem contrapartidas sub-reptícias seria lançar suspeita igual sobre reportagens não só da revista Veja como de todos os grandes veículos de comunicação do país. Um despropósito inaceitável e inexistente, como a própria direção de Veja pode confirmar.
O terreno a que se refere a reportagem já estava arrendado à empresa rural do sr. Francisco Mendes muito antes de pertencer à JBS — e antes de o senhor Gilmar Mendes se tornar ministro. Nunca foi um favor. O arrendamento sempre foi pago a preços de mercado.
Teletransportar fatos antigos — lícitos e justificáveis — para o ambiente confuso de hoje é uma tentativa obliqua de reescrever a história.