No ciclo do atraso
Dependente do mercado interno, e sobrevivendo de subsídios e barreiras protecionistas, a produção do país vai ficando para trás no cenário mundial
A indústria brasileira tem se movimentado, sim — mas em círculos. É um giro em falso. Ela não consegue competir com as estrangeiras, e por isso, para sobreviver, depende de subsídios e barreiras protecionistas. E, quanto menos se integra ao mercado mundial, mais atrasada tecnologicamente e menos competitiva ela fica. Esse círculo vicioso perdura há décadas e, enquanto o país não encontra a saída para escapar do impasse, as empresas nacionais vão ficando para trás. Os números não deixam dúvidas. Em 1990, o parque industrial brasileiro era responsável por 3% de toda a produção planetária de mercadorias manufaturadas. Àquela altura, era um porcentual idêntico ao da China. Hoje, a participação nacional recuou para modestos 2%, enquanto os chineses são responsáveis por robustos 25% de toda a produção da indústria mundial. A comparação com uma potência em ascensão avassaladora como a China talvez seja injusta, porém ilustra a incapacidade da indústria brasileira — eterna dependente do cativo mercado interno — de conquistar território no comércio global.
Parte dos problemas responde pelo nome de “custo Brasil”. São fatores como o crédito caro, as tarifas de eletricidade nas alturas, o gasto pesado com a logística de transportes e segurança, a tributação excessiva, a burocracia insaciável. Segundo estudo divulgado pela Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), o custo de fabricar no país uma mercadoria manufaturada pode chegar a ser 30% superior ao de produzir o mesmo item nos Estados Unidos ou na Alemanha. Outro levantamento, encomendado pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), revela que o custo de um carro feito no Brasil supera em mais de 30% o de um similar produzido no México e em 60% o do veículo feito na China.
Em vez de enfrentar os obstáculos para valer, com um plano coerente de longo prazo, o que faz o governo? Cede a pressões dos lobbies e ergue mais barreiras para assim dar sobrevida à indústria nacional. Recentemente, a estratégia protecionista de fôlego curto ajudou, por exemplo, a reavivar os estaleiros. Entretanto, foi uma bolha de investimento, inflada pelo crédito público e na base da euforia com a descoberta de jazidas petrolíferas. Com a crise na Petrobras, o setor entrou em colapso. Alguns fabricantes de navios e plataformas, que tinham na estatal a principal cliente, desaceleraram a produção ou fecharam as portas. Foram para a rua cerca de 50 000 trabalhadores, mais da metade do contingente empregado em 2014, antes da recessão.
As montadoras de veículos representam possivelmente o setor mais sensível à gangorra da economia nacional. Nos anos de rápido crescimento, de 2010 a 2013, o país saltou para o quinto posto entre os maiores consumidores de carro do mundo. Os bons números atraíram novas marcas, inclusive algumas de luxo. O governo resolveu contribuir — de maneira controversa. Em acordo firmado com a indústria, criou um programa chamado Inovar-Auto, que favorecia as fábricas instaladas aqui e penalizava os produtos importados com sobretaxas. Mais uma vez, tratou-se de uma política de incentivo à fabricação, para o consumo doméstico, de produtos pouco competitivos no exterior. O Inovar-Auto acabou condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), por, na prática, erguer barreiras aos importados além das permitidas. Veio a queda no consumo interno, e qual foi o resultado? A produção desabou 40%, de 3,5 milhões, em 2013, para 2,1 milhões de veículos, em 2015, o que deixou uma capacidade ociosa nas fábricas que persiste até hoje.
A ressaca não teria sido tão brava caso a indústria automobilística brasileira fosse preparada para negociar fora, e não apenas dentro das fronteiras do Brasil — e, quando muito, em alguns países vizinhos. Agora haverá uma nova política específica para o setor, batizada de Rota 2030. Menos protecionista, o plano condiciona os novos incentivos tributários, cuja duração prevista é de quinze anos, a investimentos em pesquisa tecnológica e à produção de veículos mais eficientes e menos poluentes. Isso, na verdade, deveria ser uma obsessão das fabricantes — com ou sem incentivo.
Como bem define o economista Edmar Bacha (leia a entrevista), o Brasil é um gigantinho quando o assunto é tamanho da economia, mas um anão quando se trata de comércio internacional. A participação do país no total de transações comerciais no planeta fica ao redor de 1%. No que diz respeito à indústria, o comparativo é ainda mais constrangedor. Segundo levantamento feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), as fábricas brasileiras têm uma participação irrisória de 0,6% das exportações globais. China (17%), Alemanha (10%) e Estados Unidos (9,4%) lideram; o Brasil também está atrás da Coreia do Sul (3,8%) e do México (2,7%). Praticamente não existem marcas brasileiras de alcance internacional. A Embraer, entre algumas outras exceções à regra, é uma avis rara: a terceira maior fabricante do mundo no ultracompetitivo mercado de aviões. Em contrapartida, o café é um exemplo triste de como o país faz pouco para desenvolver a sua indústria: os grãos viajam para a Europa e retornam empacotados em cápsulas para ser usadas nas máquinas domésticas de expressos.
No momento, a indústria mundial dá os primeiros passos naquela que promete ser a sua quarta revolução — e o Brasil, novamente, tem se esforçado em ficar para trás. O aumento da capacidade de processamento dos computadores e a expansão da conectividade, ambos em ritmo exponencial, além do advento de tecnologias como a robotização, as impressoras 3D, a inteligência artificial, a realidade virtual e a aumentada e a nanotecnologia, entre outros fatores, começam a causar um avanço sem precedente na produtividade das indústrias. Inovações já estão no mercado, mas algumas nações não parecem preparadas para a transição.
Um estudo recém-concluído do Fórum Econômico Mundial, em parceria com a consultoria americana A.T. Kearney, aponta a dimensão desse desafio. Foram analisados critérios que vão da infraestrutura produtiva ao capital humano e à capacidade de inovação. Entre os países avaliados, há dois grupos principais: o de 25 nações líderes, aquelas em melhores condições de lidar com a transformação em andamento, como EUA, Alemanha, Japão e Coreia do Sul; e o dos chamados países nascentes, que são os menos capacitados, com 58 membros, entre eles o Brasil. “Perdemos a onda de investimentos necessários para preparar a indústria para a próxima revolução”, diz Carlos Higo, sócio da A.T. Kearney.
Como o setor não está inserido nas chamadas cadeias globais de valor — em que países e regiões se especializam na produção de determinados componentes —, Higo defende a ideia de que o Brasil dedique maior atenção a duas ou três áreas nas quais dispõe de potencial competitivo para se tornar líder e que estejam em condições de se desenvolver rapidamente e de adicionar valor ao longo da cadeia, como o setor de alimentos. “Se optar por uma estratégia abrangente, o país correrá o risco de não colher resultados”, afirma o especialista. O estudo adverte que nem todas as economias estarão aptas a perseguir o estágio de indústria avançada e inovadora e poderão precisar se dedicar à atividade manufatureira tradicional, caso tenham vantagens competitivas, como o baixo custo trabalhista. O Brasil de hoje não se encaixa nem em uma situação nem em outra. Com isso, a pergunta incontornável é: de que modo a indústria nacional poderá participar da revolução que o futuro, como mostra a reportagem a seguir, desenha para o setor?
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600